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Foto do escritorA Vida no Cerrado

Os desafios de um Bioma em disputa

Desmatamento e luta pela terra acirram os conflitos no coração do Brasil


por Natalia Brito, Núcleo de Advocacy, Ações e Parcerias

No Cerrado, o principal fator que coloca em risco as espécies é o desmatamento e a consequente destruição de habitats, o que, por sua vez, é causado pela abertura de novas áreas para a agropecuária, especialmente para a expansão das lavouras de soja.


Supressão da vegetação nativa do Cerrado de São Domingos, em Goiás. Imagem por Júlia Chaves.



A destruição das paisagens originais de Cerrado foi intensa no século 20, principalmente a partir da década de 1970. Eram consideradas uma fronteira a ser explorada. A Embrapa, em cooperação com parceiros internacionais, uniu esforços para o desenvolvimento tecnológico de culturas agrícolas na região. Durante a ditadura militar (1964-1985), políticas públicas foram implementadas para incentivar a expansão da produção agrícola na região, seguindo o pacote tecnológico da chamada revolução verde. As terras planas e a vegetação esparsa do Cerrado eram propícias para a implantação da agricultura mecanizada e, por não ser tão distante do eixo Sudeste, o Centro-Oeste despontou como uma fronteira agrícola atrativa.


É comum ouvir as pessoas referirem-se ao Cerrado como um bioma feio, desértico e vazio de biodiversidade. Além de ser equivocada, essa visão ajuda a justificar a acelerada degradação do bioma. Assim, alimenta a impressão de que o Cerrado é local apenas para a pastagem e produção de commodities. A consequências são danos a seus serviços ecossistêmicos, principalmente, em termos de regulação climática e de recarga hídrica. 


Cerrado nativo de Minas Gerais.



Longe de ser vazio, o Cerrado é um dos ecossistemas mais ricos em biodiversidade do mundo. O Cerrado responde por 1/3 da biodiversidade do Brasil, com 44% de endemismo de plantas. Trata-se da savana mais rica em biodiversidade do mundo. A perda dessa riqueza biológica traz riscos não só às espécies e aos ecossistemas que compõem o bioma, como também às populações que dependem dele, sobretudo para o extrativismo de subsistência. Se mantido o padrão de destruição do Cerrado observado entre 2003 e 2013, até 2050 serão extintas 480 espécies de plantas e perderemos mais 31-34% do Cerrado. 


Pequi, o ouro do Cerrado, também encontra-se ameaçado diante dos dilemas ambientais no bioma.



Apesar de sua importância, o Cerrado é um dos biomas brasileiros mais ameaçados, restando apenas cerca de 46% de sua vegetação nativa. A pressão do agronegócio encontra um bioma frágil do ponto de vista da conservação. Possui aproximadamente 8% de sua extensão protegidos por Unidades de Conservação (UCs), sendo apenas 3% em regime de proteção integral. A maior parcela do Cerrado compõe-se de terras privadas, reguladas pela Lei de proteção da vegetação nativa (Lei nº 12.651/2012). A legislação estabelece a necessidade de proteger 20% da área dos imóveis rurais com vegetação nativa em Reservas Legais (RL) na maior parte do bioma. Portanto, boa parte do Cerrado está juridicamente desprotegida, sujeita ao desmatamento legal. O cumprimento da legislação autoriza cerca de 40 milhões de hectares a serem legalmente suprimidos no Cerrado. 


O manejo agropecuário baseado na extensão, e não na concentração, gera uma fragmentação muito grande da paisagem. A conservação de fragmentos pequenos isolados pode não ser suficiente para impedir a perda de biodiversidade. É necessário que áreas estejam conectadas a outras, formando um mosaico, para poder contribuir com a preservação, favorecendo, inclusive, o fluxo gênico que colabora na variação genética das espécies, melhorando sua saúde e consequentemente sua permanência no espaço.


Topo da Serra Geral, na Bahia.



Vale mencionar que o art. 225 da Constituição Federal estabelece os biomas considerados patrimônio nacional, no entanto, o Cerrado, bem como a Caatinga e o Pampa não são mencionados. Isso é uma decisão política de desvalorização dos ecossistemas abertos e complacência com a conversão da vegetação nativa desses biomas, de modo a permitir seu sacrifício em detrimento dos biomas florestais. 


Os remanescentes de vegetação, por sua vez, são transformados em áreas turísticas e estão sofrendo alta pressão devido à especulação imobiliária, a exemplo da Chapada dos Veadeiros. A busca por áreas de lazer e descanso em contato com a natureza tem aumentado, provocando a expansão dos chamados Condomínios Rurais que avançam sobre as Áreas Protegidas dos municípios e da Zona Rural. A pressão sobre os remanescentes de área verde tem gerado impactos ambientais, expondo os conflitos e contradições presentes na realização deste processo.


O bioma tem o segundo maior conjunto de espécies ameaçadas. 302 espécies, ou 6,3% das avaliadas, de animais do bioma se encontram com algum grau de ameaça; 47 estão criticamente em perigo (1,8%); 35, em perigo; e 64 são classificadas como vulneráveis. Os números foram levantados pelo Sistema de Avaliação do Risco de Extinção da Biodiversidade (SALVE), do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). 


Biodiversidade cerratense.



São 12 mil espécies de plantas, que poderiam ter seu material genético conhecido pela indústria farmacêutica e de cosméticos, bem como explorado seus benefícios alimentares. No entanto, seu potencial tem sido substituído por monoculturas. 


Produtores de Nova Aguilhada realizam colheita de folhagens em chácara no Assentamento 15 de Agosto, em São Sebastião (DF). Da esquerda para direita: Fernando Rocha, Francisca da Silva e Carlos Freitas.



A conservação do Cerrado está diretamente associada à sobrevivência dos Povos, Comunidades Tradicionais e Agricultores Familiares (PCTAFs) que praticam o uso sustentável de suas paisagens. Entre essas populações estão quilombolas, povos indígenas, comunidades ribeirinhas, comunidades de fundo e fecho de pasto, geraizeiros, quebradeiras de coco-de-babaçu, entre outros que, embora oficialmente não sejam reconhecidos, fazem do Cerrado em pé a base de sustento, seu modo de vida e sua cultura.


Iniciativas de mapeamento comunitário dos Povos e Comunidades Tradicionais podem ajudar a identificar comunidades fora das demarcações oficiais e fortalecer os movimentos sociais no bioma. A definição de seus territórios é fundamental para que órgãos como o Ministério Público e outros garantam o direito à terra, combatendo a grilagem e práticas predatórias do agronegócio, como o uso irregular de agrotóxicos, comprometimento dos recursos hídricos e invasão e apropriação de terras de uso tradicional.


O Cerrado superou a Amazônia como o bioma mais devastado do Brasil, representando 61% do desmatamento total em 2023. O Cerrado, que já perdeu mais da metade de sua vegetação nativa, passou ainda ser o protagonista na supressão de vegetação no país. Mesmo diante desse cenário, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) empenha esforços para a construção da Hidrovia Araguaia-Tocantins que visa facilitar o escoamento de commodities agrícolas e expandir a fronteira agrícola do Cerrado, agravando o cenário atual. 


Os impactos potenciais deste empreendimento são alarmantes e abrangem diferentes aspectos. O canal de navegação pode provocar erosão das margens e ilhas, alterar a força, velocidade e direção das correntes, contaminar a água por efluentes e outros danos à qualidade da água. A dragagem e a derrocagem podem afugentar e perturbar o comportamento da ictiofauna, dificultar a recuperação dos estoques pesqueiros (região de berçários) e introduzir espécies exóticas no ecossistema. As mudanças nas rotas de navegação e locais de pesca, somadas ao aumento do esforço pesqueiro, podem reduzir a lucratividade da atividade, afetando diretamente a principal fonte de renda e subsistência das comunidades ribeirinhas, quilombolas e indígenas da região. A obra prevê recursos do PAC, que deveria impulsionar um crescimento sustentável e resiliente. Contudo, o investimento bilionário resultará em impactos socioambientais e desperdício de recursos públicos, diante das previsões de insegurança hídrica e baixa navegabilidade proporcionadas pela mudança do clima.


Assim, vemos que o Cerrado recebe menos atenção que ecossistemas amazônicos e, ainda, tem pouco reconhecimento internacional. Diante disso, a 16ª Conferência das Nações Unidas sobre Biodiversidade (COP16) se demonstra como importante espaço de incidência na Convenção sobre Diversidade Biológica (CBD) para organizações que atuam em prol da conservação do Cerrado, visto que os países discutirão questões relacionadas à conservação da diversidade biológica, ao uso sustentável de seus componentes e à distribuição justa e equitativa dos benefícios decorrentes da utilização dos recursos genéticos. 


Paisagem na Reserva Extrativista Recanto das Araras de Terra Ronca, em São Domingos (GO)



O Cerrado promove contribuições para a manutenção de serviços ecossistêmicos de relevância global, como a regulação do clima, conservação da biodiversidade, provisão de água e oferta de alimentos. À vista disso, A Vida no Cerrado pretende dar visibilidade à riqueza do bioma em âmbito internacional, além de mobilizar recursos e cooptar cooperação técnica durante a referida Conferência. Queremos dar voz e vez para a savana mais biodiversa do mundo, que tem sido sucessivamente esquecida ou atacada.


Sugestão de leitura:


Parecer contra PEC n° 504 de 2010, que busca altera o § 4º do art. 225 da Constituição Federal, para incluir o Cerrado e a Caatinga entre os biomas considerados patrimônio nacional: https://fpagropecuaria.org.br/2019/10/15/cd-pec-504-2010/ 



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