(Des)ordenamento urbano, irresponsabilidade pública no tratamento de efluentes, águas pluviais, lixo e expansão imobiliária são as principais ameaças às águas urbanas do Cerrado
por Maria Alice, Núcleo de Comunicação e Engajamento (NuCom) e Karlla Ribeiro, coordenadora do NuCom.
Do outro lado da moeda, crianças passam mal com diarreia e adultos aparecem com feridas pelo corpo. A boca solta a vontade por água encanada e saudável. As paredes marcam o desenho da altura do último alagamento.
No Cerrado, água e gente têm pressa.
Em um cenário de crise climática e humanitária, a sapiência das águas identifica as pessoas com quem podem contar: ativistas ambientais e dos direitos humanos, pesquisadores, comunicadores e amantes da natureza. Mas por quanto tempo? Uma andorinha não faz verão. Os percalços do ativismo ambiental passam desde constrangimentos, denúncias falsas e calúnias até tentativas múltiplas de homicídio.
Enquanto tem gente lutando pelas águas e pelo direito de simplesmente ter acesso à ela, tem gente do Estado reforçando a política pública mais eficaz do Brasil: a violência estrutural. E aqui, as ramificações e setorizações do abuso e da violação são várias, atravessando vulnerabilidades ambientais e climáticas, desigualdade social, racismo ambiental, sucateamento da infraestrutura educacional e de pesquisa e, é claro, desrespeito aos direitos humanos, aos da natureza e à vida digna.
Em março, nossas histórias são rios, serpenteiam e largateiam em direção um ao outro. Como água doce nas memórias mais delicadas de uma vida, desenham no solo e na sua tela. Cantam palavras de ajuda, num timbre familiar, o barulho característico de água corrente, água sem sinônimo, água sujeito-território, água agente-revolução.
Como grito de guerra para proteger o rio Melchior (DF), ao menos este ano não morreremos. Nem gente nem água. Do outro lado do quadradinho, a esperança vale - da mesma força e intensidade - para a proteção do Ribeirão Sobradinho. Há quase 60 quilômetros de distância, o córrego Josefa Gomes, em Formosa (GO), não aguenta mais presenciar a tragédia de alagamentos: seus vizinhos humanos lidam rotineiramente com a dupla chuva torrencial e casas alagadas. Na capital goiana, o Meia Ponte é um símbolo silenciado, um mero descarte.
Em 2024, ainda há o que comemorar. Há o que denunciar. Em 2024, nossos rios de vida não serão vales de morte.
Melchior, feridas de guerra e memórias de amor
Cachoeira do Ribeirão Taguatinga, ponto de encontro para turismo de moradores na região. Poucos quilômetros abaixo, se transforma em Rio Melchior.
Em seus tantos anos de vida, o Melchior foi sinônimo de alegria aos finais de semana, braçadas no rio gelado, coral de risadas pueris, lazer para adultos e idosos, piqueniques nas pedras escuras e saudável fonte hídrica para boa colheita. É um comprido filho das águas, separa Samambaia e Ceilândia, duas das maiores cidades do Distrito Federal. Antes dele está o Ribeirão Taguatinga, com bonitas cachoeiras, cujos confluentes são o córrego homônimo e o Gatumé.
Rio enquadrado na classe 4, a menos exigente das classes de qualidade ambiental, tem suas águas proibidas para uso humano e permite o descarte de efluentes. Melchior deságua no rio Descoberto, fonte de abastecimento para 64% da população do Distrito Federal (DF). Já distante, o Descoberto encontra o Corumbá IV, outra fonte hídrica para a capital.
Desde que foi escolhido como corpo receptor de esgoto doméstico e vizinho menos favorito do Aterro Sanitário de Brasília, as memórias boas de Melchior ficaram tão turvas quanto suas águas em um dia particularmente ruim. Deram lugar para lamúrias em forma de espuma densa e fedorenta, contaminação irregular, denúncias de descarte de esgoto bruto ou mal tratado, lixo carregado por enxurradas, rejeitos de abatedouro e chorume controverso.
É fonte de susto e objeto violência. Para comunidades como a VC-311, cuja água potável é negada, o Melchior é a resposta mais próxima, apesar dos drásticos pesares. Registra presença preocupante de cobre, em concentração 5 vezes maior do permitido pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), e marca alto nível de metais pesados, de acordo com estudo de pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB), pelo laboratório de limnologia AquaRiparia.
Formalmente documentado pelo estudo da Câmara Legislativa do Distrito Federal, as principais fontes de poluição no Melchior são: esgotos domésticos e industriais; águas pluviais; resíduos sólidos; agrotóxicos; fertilizantes; detergentes; precipitação de poluentes atmosféricos; sedimentos e dejetos animais. Esses contaminantes podem ser pontuais (passíveis de identificação e mapeamento) e difusos (cuja rastreabilidade é complexa).
Antes de discutirmos as fontes de efluentes identificáveis, é importante adicionar mais dois pontos de preocupação apresentados no estudo público: as fontes de poluição ilegais e clandestinas e a contaminação oriunda do Setor de Oficinas de Taguatinga, a partir do descarte inadequado nas nascentes do Parque Boca da Mata.
Corredeiras do Ribeirão Taguatinga
Graças aos recursos de rastreabilidade legal, é possível identificar os principais responsáveis pela qualidade ambiental da Bacia do Rio Melchior. Sua saúde depende do trabalho da Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb), do Serviço de Limpeza Urbana distrital (SLU), incubido da Unidade de Tratamento de Chorume do Aterro, e da empresa alimentícia JBS, de acordo com dados do Instituto Ambiental de Brasília (IBRAM). A denúncia de outras fontes ilegais de despejo e poluição - para além da contaminação por meio das águas pluviais - não é descartada pelos ativistas e autoridades públicas, reforçando, assim, a urgência de fiscalização às margens do Melchior.
Encarregada do esgoto das duas estações que liberam o maior volume de águas pluviais do Distrito Federal, a Caesb trata os efluentes de seis regiões administrativas (RA) nas ETE Samambaia e ETE Melchior e contempla mais de seiscentas mil pessoas. A primeira recebe todo o esgoto de sua RA homônima, ao passo que a segunda é o destino dos efluentes de Taguatinga, Ceilândia, parte de Águas Claras, Vicente Pires e Pôr do Sol/Sol Nascente. Por dia, são aproximadamente 100 milhões de litros de esgoto tratados (e liberados) na estação Melchior. Em 2022, sua vazão foi de 1.153 litros por segundo, o que equivale 75% da capacidade da estação. Essas são as informações oficiais de Ana Mota, à frente da Superintendência de Operação e Tratamento de Esgoto da Caesb, em audiência pública ano passado.
Pontos de descarga dos efluentes das duas estações de tratamento sob responsabilidade da Caesb, no Rio Melchior. As duas despejam 100 milhões de litros de efluentes por dia.
Os dados se chocam parcialmente, entretanto, com as informações coletadas pela Câmara Legislativa: a média de vazão da ETE Melchior, anualmente, é de 770 litros por segundo, praticamente metade daquela prevista no projeto original (1.469 litros por segundo). Mesmo com tal expectativa de operação, a estação apresenta baixo índice eficiência em remoção bioquímica de oxigênio - a marca de 91%.
A nível de comparação, a ETE de Samambaia, que operou significativamente (219%) acima de sua capacidade em 2022, apresenta 97% no índice de eficiência de de retirada de Demanda Bioquímica de Oxigênio (DBO). Nesta estação, a média de vazão anual é de 502 litros por segundo, quase o dobro daquela prevista no projeto (284 litros por segundo). Esses dados fazem questionar a eficiência do tratamento na estação Melchior, há vinte anos em atividade.
Por meio dessa mangueira azul, o chorume é descartado para o Rio Melchior. Recentemente, a Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento Básico do Distrito Federal (Adasa) liberou o descarte diário de 2 milhões e 210 mil litros de efluentes de esgoto por dia.
O segundo grande nome nesta reportagem é o Serviço de Limpeza Urbana distrital (SLU), responsável por tratar o chorume do Aterro Sanitário de Brasília (ASB), em Samambaia, inaugurado em 2017. Sua vida útil foi estimada para até 2030, mas talvez não passe de maio de 2027, informa o jornal Metrópoles. Em 2021, aproximadamente 760 toneladas de resíduos sólidos foram aterradas, entretanto, em dois anos, o montante mais que duplicou: dados de 2023 apontam que 2 mil toneladas de lixo chegam todos os dias ao aterro do DF.
De acordo com o Metrópoles, em um mês, são, em média, 62 mil toneladas de resíduos depositados - apenas 10% teriam a destinação correta. A capacidade total do ASB é de 8,13 milhões de toneladas de descarte, que logo será alcançada devido ao mau uso e despejo inadequado. “Para suprir a necessidade que virá nos próximos 47 meses, o Governo do Distrito Federal segue com licitação para mais uma área de 60 mil metros quadrados de aterro”, informa o texto.
Todo o conjunto de massa de rejeito no Aterro, ao entrar em contato com chuva e a umidade natural da matéria orgânica decomposta, gera o chorume, líquido fedorento e de alto potencial tóxico. Além de material contaminante e ameaça para os cursos de água superficial e aquíferos, o chorume também pode ser importante fonte de energia, através da geração do biogás. Mas não nos moldes e na forma com que está sendo gerido e despejado, após tratamento, no rio Melchior.
No Distrito Federal, a empresa contratada pelo SLU para manejo do chorume é a Hydros Soluções Ambientais. Em 2023, foram tratados 290 mil m³ de chorume, em que a média foi de 795 metros cúbicos por dia; 268 mil metros cúbicos (média de 735,0 m³ ao dia) em 2022; e, por fim, 326 mil m³ em 2021, com média de 1 mil metros cúbicos por dia. Ao total, a soma do líquido conseguiria encher mais de 353 piscinas olímpicas.
Ponto de armazenamento do chorume na Unidade de Tratamento. Foto por Lúcio Bernardo Jr. / Agência Brasília
Por fim, os registros legais nos levam à empresa de alimentos JBS. Responsável pelos efluentes de um abatedouro de aves na região, a JBS possui uma estação de tratamento com capacidade para tratar 12.000 metros cúbicos (m³) de efluentes por dia. A nível de contexto, são 280 mil aves por dia, incluindo, também, a preparação de carne e subprodutos. Apenas de salsicha, a capacidade média é de 70 toneladas por dia. Isso se traduz no tratamento de 500 m³, por hora, de efluentes, apesar da ETE conseguir lidar apenas com efluentes primários e secundários.
Na ativa legalmente desde 2015, a JBS, entretanto, é extremamente nebulosa quanto aos seus dados e métrica de tratamento. Conforme a investigação da Câmara, publicada ano passado, os documentos apresentados pela empresa esclarecem apenas o direcionamento dos resíduos sólidos plásticos. Descartes como ossos, vísceras, carcaças, sangue, aves mortes, óleos lubrificantes, lâmpadas fluorescentes, embalagens de agrotóxicos, polietileno de baixa densidade, plásticos de alta densidade, cinzas de caldeira e papelão, por exemplo, não apresentam dados claros acerca de como estão sendo direcionados e tratados e onde são descartados.
Espuma intensa na saída dos efluentes tratados pelas duas estações de esgoto, em 2021.
Como mostra reportagem do DFTV, a própria fiscalização pública falha: é responsabilidade da empresa apresentar as análises de testagem da qualidade dos efluentes despejados, à pedido da Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento Básico do DF (Adasa). Entretanto, ao fazer os testes, os indicadores apresentados são escolhidos pela empresa interessada e, desse modo, os índices mais baixos podem não ser entregues às entidades públicas responsáveis. Isso demonstra arbitrariedade no processo de fiscalização da qualidade do tratamento e da água descartada no Melchior, ocultando informações importantes acerca da qualidade do rio.
Para além, não existe qualquer tipo de retorno financeiro para as entidades públicas, destinado lidar com os danos ambientais causados. As três empresas destacadas não cumprem essa responsabilidade específica, condição direta da outorga do uso dos recursos hídricos: de acordo com investigação realizada pela Câmara Legislativa do Distrito Federal, o DF não recebe, até então, nenhuma compensação monetária das empresas que usam o rio, como determina a lei. Esse retorno de verba é voltado para a recuperação e despoluição das bacias degradadas, afinal, o uso do Melchior - assim como de qualquer outro curso d’água - é entendido como utilização de um bem público.
Intensa e espumosa vazão de efluentes no Melchior. Comunidades ribeiras utilizam água de cisternas construídas há 800 metros depois, vulneráveis à contaminação.
Na realidade concreta da saúde do Melchior e no cotidiano das comunidades vizinhas a ele, todo esse panorama se traduz em algo próximo a crime ambiental.
Violações de direitos humanos, iminência de tragédias e tartarugas mortas
Investigação da Polícia Civil identificou que a qualidade da água do Melchior nas proximidades dos pontos de descarte estão extremamente contaminadas pelo chorume bruto
“Nosso maior problema aqui é a água. Os rios e as águas do solo estão contaminados, inclusive meus netos estão com diarreia. Quando podemos comprar água, é o que conseguimos para cuidar das crianças. O que falta é o governo olhar para nós e apoiar esta comunidade que tem bastante moradores. No dia mundial da água, será que ela falta na casa dos políticos?”, questiona Antônio Silvestre, morador na VC-311, área ribeirinha à bacia do Melchior.
O desabafo do senhor Antônio é reflexo de uma realidade dura, palavras que aparecem na boca de gerações de famílias negligenciadas na comunidade.
Água e gente têm pressa.
Existem pessoas que habitam, há anos, as proximidades do Melchior. Algumas estão mais adentro, próximas à BR-060, outras são vizinhas e ribeiras aos fluxos de água. Um dos endereços é o Acampamento Rosa Luxemburgo, o outro é a comunidade VC-311. Infelizmente, os moradores integram a população do Distrito Federal que não tem acesso à água tratada.
Um dos dois pontos de descarte de efluentes de esgoto, sob responsabilidade da Caesb
Na região, não há água encanada nem captação de esgoto, então o recurso é optar pela captação de cisternas ou compra de galões de água… A contaminação, entretanto, é um risco palpável, juntamente com a poluição do ar: independente dos humores do vento, o mal cheiro do rio, do Aterro ou do abatedouro chega até a comunidade ribeira. Água, terra e solo estão sob ameaça, encurralando a qualidade de vida dos moradores e trazendo consequências diretas na saúde. A questão ultrapassa o debate ambiental - apesar de o Meio Ambiente não ser separado dos humanos -, e atravessa intensamente saúde pública, emergência sanitária e direitos humanos.
“As crianças não merecem isso e nós adultos também não”, desabafa a senhora Laura Pereira da Silva, em conversa com os ativistas Newton e Carvalho.
Laura Pereira da Silva, mora há 24 anos na VC-311 e fala acanhada, as mãos no rosto, o olhar distante e longas pausas: “As águas que precisamos não temos, temos acesso para beber nas cisternas, mas uma hora tem e outra hora não tem. A água vem suja. Nós precisamos muito, muito de água. Pedimos que façam o esforço de possibilitar água potável para nós. Nossas crianças vivem doentes e não sabemos se é por conta da água que conseguimos, porque ninguém faz a análise. As crianças não merecem isso e nós adultos também não.”
Infelizmente, a comunidade VC-311 tem contato direto e constante com água extremamente inadequada para consumo. Em outubro de 2023, Newton solicitou ao laboratório Cráton a testagem de amostra retirada do rio Melchior, em um ponto próximo a onde foram colocadas cisternas de captação de água para a comunidade. Os resultados apontam que existem diversos componentes que indicam a presença de chorume na no rio - chorume em um estado diferente das condições previstas para o pós-tratamento. A qualidade da água está muito distante do permitido para potabilidade humana.
O ativista Newton Vieira retirou amostra de água desta área, distante em aproximadamente 800m da comunidade VC-311
“Ainda temos muitas pessoas doentes aqui. As pessoas apresentam feridas e perebas no corpo devido à água. Parece que a água não está sendo despoluída, pelo contrário, está cada vez mais poluída. Encontramos muitas tartarugas mortas”. Wellington Guimarães, cuidador de idosos, relembra da promessa que acompanhou o crescimento das estações de tratamento e do aterro sanitário: a expectativa de melhora da qualidade da água veio acompanhada da soltura de tartarugas como indicadores ambientais.
Olhando para longe da câmera, como quem olha para um sonho desejoso, Leuza Rodrigues quer falar sobre a água que lhe foi prometida. “Até agora não temos nenhuma solução. Nós precisamos dessa água para beber e fazer comida, mas ainda não temos essa vitória em mãos. Nós esperamos que essa parte venha a se cumprir, porque é uma promessa e ninguém nunca cumpriu isso nós que vivemos neste lugar”, desabafa.
O Distrito Federal tem a maior taxa de tratamento de esgoto do país, de acordo com dados do Instituto Trata Brasil. Quanto ao acesso à água tratada, 99% da população urbana é abastecida pela rede de águas, ao passo que apenas 15% da população rural do DF tem esse acesso, pelos dados da Companhia de Planejamento regional (Codeplan).
Senhora Leuza demonstra sentimento em sua fala, na esperança de conseguir sua vitória. Os depoimentos dos moradores foram apresentados em audiência pública no dia 27 de março.
Infelizmente, Leuza, Laura e Antônio moram em uma comunidade extremamente vulnerabilizada por diversos fatores. Para além dos já mencionados neste longo texto, estudo indica que morar próximo de aterros sanitários, além de afetar a saúde (o que não é nenhuma notícia nova), reduz a longevidade. Esses espaços podem reduzir até dois meses na expectativa de vida e, ao considerar a vulnerabilização da qualidade de vida, saúde e nível econômico desses bairros, os resultados colocam cerca de 15 meses a menos.
No dia 27 de março, Newton e Carvalho participaram de mais uma audiência pública para denunciar a infração aos direitos humanos na comunidade VC-311. Relataram também ao Ministério Público e às divisões responsáveis pela infância e adolescência e defesa da pessoa idosa e à terceira Promotorias de Justiça de Defesa do Meio Ambiente (Prodema).
Contaminação recorrente nas águas e na terra
Ao longo da jornada, Newton Vieira e Alzirenio Carvalho denunciaram mais de 13 vezes crimes ambientais contra o Melchior e seus povos. Conversar com o trio de amigos ativistas é escutar histórias de luta e de dor.
E força de vontade para não deixar as violações seguirem impunes.
Em 2020, o SLU foi alvo de denúncias por conta de um intenso vazamento no Ribeirão Taguatinga - quem não pode receber qualquer tipo de contaminação química - e no Melchior. Espumas densas e mal cheirosas são vistas ao longo do rio, despejadas pelos dois pontos de tratamento de esgoto - neles, são descartados 100 milhões de litros por dia. Ao analisar imagens pelo Google Earth, é possível ver esse tipo de contaminação em novembro de 2015, maio de 2019 e de 2020 e abril de 2021. No último ano das imagens em questão, a Polícia Civil do Distrito Federal foi acionada para investigar, em campo, a qualidade ambiental do Melchior.
Pelo percurso, encontraram tartarugas mortas nas margens - a carcaça de uma delas estava com marcas de tiros. Acompanhados pelo forte odor na água e a presença de espumas, a vegetação ao redor era vigorosa, mas havia fauna na água ou tartarugas vivas. Os resultados dos testes amostrais demonstram valores compatíveis de poluição por esgoto sanitário. Ao comparar as águas após os despejos com as amostras antes dos despejos, notam que o efluente lançado no rio atesta carga orgânica e de outros elementos similares aos do esgoto. Além disso, a forte presença de amônia, inclusive, pode comprometer a sobrevivência da fauna.
Quando trilhamos ao lado do Ribeirão Taguatinga, Carvalho reforça que eles levam as pessoas para conhecer primeiro o ribeirão, que é mais bonito e ainda pode ser fonte de lazer. Assim, as pessoas podem se encantar pelas duas grandes cachoeiras e, quem sabe - e tomara! - se importar com a proteção do Melchior, metros abaixo de onde estávamos.
Para quem cresceu em contato com a vegetação nativa do Cerrado, assistir os aclives tão cheios de biodiversidade aquece o coração. Onde o solo está plano, pequizeiros antigos nos protegem com sua sombra.
Na linha do tempo, 2021 foi marcado por mais um acidente ambiental intenso na região, além da espuma densa. Uma grande adutora de transporte de esgoto rompeu, derrubando diversas árvores e contaminando o solo, as nascentes e o Ribeirão Taguatinga com efluente bruto. Evandro Teles, companheiro da dupla de ativistas na luta pelo Melchior, relembra que a adutora estava semi-enterrada, o que reduziu parcialmente o impacto do líquido, mas, ainda assim, criou uma cratera com aproximadamente seis metros de profundidade e quinze de largura.
Talvez a expressão certa seja crime ambiental, não apenas “acidente”.
“Foram poucas pessoas que viram o estrago que o último rompimento fez. Ele abriu uma cratera imensa, com uns seis metros de fundura e uns quinze de largura. Ela não era aérea igual aquela ali, ela estava parcialmente enterrada. Ficou vazando por mais de um mês, durou até eles conseguirem desviar para jogar no ribeirão Taguatinga. O esgoto de Taguatinga, Ceilândia, parte de Águas Claras, Vicente Pires, Pôr do Sol e Sol Nascente ficou dias sendo lançado nesse ribeirão até finalmente arrumarem”, explica Teles.
Adutora em direção à ETE Melchior, transportando o esgoto de cinco regiões administrativas.
A trilha é úmida e verde, naquele dia posterior à uma manhã e tarde chuvosa, as flores colorem arbustos vistosos como adornos amarelos e rosados. Já quase próximos à primeira cachoeira, Teles aponta para a adutora aérea que nos segue como uma sombra, comprida e apoiada por hastes de ferro. “A força do próximo rompimento será enorme”, estima.
Aquela estrutura desenha o motivo de preocupação constante dos três amigos.
Carvalho afirma categoricamente: a questão não é se uma daquelas adutoras estourarão novamente, mas, sim, quando. “O tempo desgasta a estrutura de alvenaria da canaleta, junto com os gases e o movimento das águas que estão lá dentro. Vai deteriorando de dentro para fora. Eu sei que vai romper, isso é fato. Nós só não sabemos precisar o dia. Quando ela romper, nós sabemos que será mais uma degradação com impacto imenso”.
Carvalho desenha que, em outros pontos, as canaletas e adutoras estão totalmente ou parcialmente enterradas. Aquela aérea, em específico, foi construída de tal forma por conta do sítio arqueológico encontrado na região, para evitar interferir em outras possíveis descobertas. “Se a gente vacilar, eles destroem tudo”, desabafa.
“O Ribeirão Taguatinga é classe 2, ele não pode receber esse tipo de rejeito. Por isso estamos brigando e reforçando esse ponto. O Melchior é classe 4, mas o Taguatinga, não. Temos cachoeiras aqui e não vamos aceitar esse tipo de violação”, acrescenta Carvalho.
Primeira cachoeira do Ribeirão Taguatinga. Cantante como só as águas conseguem ser.
No dia anterior à trilha, choveu bastante por todo o Distrito Federal. Para os ambientalistas, a chuva é um indicador de preocupação e sinônimo de contaminação: canaletas, adutoras e peneira vazam água de esgoto bruto. O que nos parece, ao longo da conversa, é que aquela situação tão complexa e cheia de pontos a serem resolvidos é um problema que nunca deixa de ser problema.
Você está entrando na peneira, em um dia particularmente quente. Ao chão, é possível ver, nos vestígios do alagamento do dia chuvoso anterior, a vegetação característica de áreas antropizadas - especialmente lodo.
Mesmo em um dia estiado, a água de esgoto vaza da estrutura
Com chuva, a situação na peneira fica dramática.
Peneira é o ponto de encontro de todo o esgoto, antes de ser encaminhado para a ETE Melchior. Quando a chuva forte chega, a área alaga a ponto das caçambas de lixo ficarem quase submersas e parecer um espaço completamente diferente. “Todo esse lugar fica tomado de esgoto”, Carvalho esclarece. O muro que impediria os respingos de contaminar o chão é perigosamente baixo e, mesmo em um dia de sol como naquela sexta, é possível ver que não é preciso a chuva para transbordar. Esse é mais um crime ambiental já denunciado pelos dois ativistas.
Para lidar com o problema de alagamentos, foram feitos dois gatos: mais uma canaleta e um grande cano junto ao chão.
Uma outra preocupação logo a fala de Carvalho: “espero que o Ribeirão Taguatinga não volte a ser um rio poluído. Na época, os moradores entraram na justiça para que o governo local fosse responsabilizado e pressionado a criar uma estação de tratamento para cuidar do esgoto local. Foi então que criaram a ETE Melchior, ativa em 2007. Ela foi quase uma compensação ambiental, mas que resolveu grande parte do problema no período. O odor anteriormente era muito forte”.
Corredeiras do Ribeirão. Foi nesse ponto que atravessamos, de braços dados em uma corrente.
Caminhar pela ARIE JK é sinônimo de esbarrar em nascentes e molhar o pé nos brejos, ter as pernas puxadas por cipós e escutar o som das águas altas cantar junto com os pássaros. Se você for uma pessoa corajosa, também pode significar atravessar o Ribeirão Taguatinga, de braços dados com seus parceiros de caminhada, porque o fluxo da conversa das águas geladas da bacia é rápido e apressado.
Apesar de crescer ouvindo minha mãe falar que “carreira não é pressa”, aqueles escorredeiras discordam. Ansiosas pelos declives e prestes a pular de mais duas cachoeiras adiante, aquelas águas têm pressa e fome. Fome por vida e saúde. Será que aqueles fluxos vorazes de água, sedentos por apenas existir, sabem que em breve vão encontrar águas do Melchior tão densas e sujas a ponto de suas análises indicarem que estão com semelhante descrição química ao do chorume bruto? Será que aquelas margens, que descem metamorfoseando rio abaixo, estremecem quando as águas escurecem pelos rejeitos e o cheiro afasta até os mais resistentes cágados?
Os ativistas ambientais e pelos direitos humanos Carvalho e Newton Vieira advocam pela vida do Melchior e de todos os seus seres durante toda a vida. Esse trabalho diário diz respeito, também, ao cuidado com todas as pessoas que dependem do Melchior e das demais águas do Cerrado para sobreviver. Afinal, não é normal ficar doente depois de tomar água que vem do fundo do chão.
Numa trilha matutina em alguma sexta-feira de março, fomos de encontro às cachoeiras do Ribeirão Taguatinga, na Área de Relevante Interesse Ecológico Parque Juscelino Kubitschek (ARIE JK). Um pouco abaixo do curso do ribeirão, o Melchior desponta. O caminho é ventoso e a paisagem é verde, amarela, azul e branca. Buritis despontam à vista, araras e jaguatiricas estavam tímidas naquele dia, mas pássaros escuros, esguios e alegres arruaçam quando nos aproximamos da água do Ribeirão Taguatinga, cuja nascente está lá no Parque Boca da Mata.
Nossos pés molham, à imagem e semelhança da experiência que cachorros-vinagre, gatos mouriscos e lobos-guarás devem ter ao trilhar aquelas mesmas rotas. Libélulas coloridas nos acompanham e baba de sapos puxam o olhar. Cogumelos coloridos de laranja e bege enfeitam madeiras soltas ao chão.
Uma das nascentes da ARIE JK, espaço também ameaçado pela especulação imobiliária que o cerca.
A conversa, entretanto, não é tão leve e bonita quanto a biodiversidade da ARIE JK. Newton Vieira, ativista pelo Meio Ambiente e Direitos Humanos, explica que uma das estratégias utilizada pelas empresas envolvidas na emissão de efluentes do rio é apelar para a “contaminação difusa”, afinal, “devido à limitação tecnológica, os órgãos de fiscalização não possuem dados assertivos do quanto cada um descarte, dos efluentes de esgoto e chorume, contribuem para degradação do rio”.
O ativista complementa: “Quando o Ministério Público cobra a responsabilização das empresas pela contaminação do Melchior, uma das argumentações contrárias das interessadas é a contaminação difusa, afinal, o rio também recebe as águas das galerias pluviais (as enxurradas de chuva, por exemplo)”.
Juntamente com seu parceiro de luta Alzirenio Carvalho, Newton participa ativamente de audiências públicas e de atividades voltadas para a proteção do Melchior e ARIE JK como um todo. A presença constante de seus corpos ativistas e mentes inquisidoras, entretanto, cobra um preço alto: a vida. Ao todo, os dois já sofreram seis tentativas de homicídio, em campo pela bacia do Melchior. Essa história, entretanto, fica para alguns parágrafos abaixo.
Flores ao longo da caminhada.
Todos esses dados e informações Carvalho, Newton e Teles carregam decorado. Talvez esta seja a maior arma que eles têm. Conhecimento e paixão pela Natureza. Durante toda a trilha, angustiada ao ver o tanto de lixo e entristecida pelo odor denso de esgoto - em algumas áreas específicas, a intensidade aumentando gradativamente -, uma pergunta dançava no fundo da mente. Por que a má gestão denunciada pelos ativistas, meios de comunicação e diversos movimentos sociais locais parecia travar uma briga de cabo de guerra? A bandeira da poluição sempre voltava ao meio, pairando entre os jogadores. A resposta é o dinheiro.
Newton me explica que a cada um metro cúbico de água tratada corretamente e descartada no rio, a empresa desembolsa aproximadamente 30 mil reais de reagente, de acordo com informação de servidores próximos aos dois. “Então, para economizarem, jogam o esgoto mal tratado no rio e causam eventos como aquela espuma intensa de 2020. Quando a imprensa denuncia, eles recuam, mas a poluição continua. Nós já demos flagrantes noturnos aqui, em que jogaram descarte bruto”, continua Carvalho.
Por mais que o Melchior esteja enquadrado na classificação 4, que permite esse tipo de despejo de efluentes, os padrões flexíveis e arbitrários de fiscalização e descarte são passíveis de investigação. Existe um importante espaço para debate e graves denúncias de crimes ambientais. Os ativistas destacam a urgência em proteger o Ribeirão Taguatinga, quem acaba sendo pego no fogo cruzado da contaminação por resíduos.
Uma briga contra o capital e o Estado
Nessa jornada de ativismo contra a poluição da bacia hídrica do Melchior, Newton Vieira e Carvalho sofreram seis tentativas de homicídio. Registradas no Ministério Público, três foram nas proximidades do aterro sanitário e as demais no perímetro do local onde são despejados os afluentes de esgoto da Caesb. “Registramos na Delegacia de Polícia, comunicamos ao Ministério Público, à Comissão de Direitos Humanos da Câmara Distrital, a todos os deputados distritais de ofício e, por fim, ao Ministério de Direitos Humanos. Após análise de risco, nos incluíram no Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH)”, descreve Newton.
Cinco dos processos de investigação referentes aos atentados foram arquivados, o que se mantém ainda é o último registro, ocorrido em janeiro de 2023. Newton e Carvalho descrevem esse temeroso episódio:
“Quando fomos para uma das atividades de campo, por volta das nove horas da manhã, o que sempre fizemos, a água do rio inteiro estava muito turva. Decidimos ir atrás, em busca de achar a fonte, sempre para o lado de fora da grade. Descobrimos uma barragem de rejeitos que estourou, mas não conseguimos identificar os tipos de rejeitos. Antes de chegarmos nesse ponto, ouvimos disparos. Ficamos tensos, o entorno do aterro sanitário tem muito mato e não deu para identificar de que lado estava vindo os disparos e nunca dá para saber de fato se foi para nos assustar ou se foi para atingir. Recuamos, não tinha como ligar para outra pessoa, então apenas recuamos próximos a uma árvore, até os disparos pararem. Quando isso aconteceu, escutamos o som de um carro arrancando”.
“Foi quando percebemos que, por trás do aterro, tem uma estrada para facilitar o acesso ao local de despejo. Acho que eles acreditaram que estávamos vendo esse efluente - por isso os tiros -, mas não estávamos, estávamos só passando. Quando o carro foi embora, conseguimos nos aproximar do ponto e circular por lá. Pensamos: descobrirmos, esse é o ponto de descarte sem tratamento que denunciaram, em anônimo, para nós.”
Quando Newton rememora essa experiência tensa, reforça a preocupação que Carvalho e ele carregam: estão sempre por fora da cerca, para nunca utilizarem o argumento de que os disparos aconteceram porque invadiram algum espaço privado. A próxima frase dita por Newton, em nossa caminhada de despedida da trilha, apertou nosso coração:
“Se nos matarem e os corpos forem encontrados do outro lado da cerca, saibam que fomos arrastados. Se estivermos dentro daquela área, pode ter certeza que eles mataram a gente e nos puxaram para dentro, porque nunca entramos, a gente sabe”.
Carvalho relembra que já passaram por diversas tentativas de coerção a fim de constrangê-los. Desde quebra do sigilo bancário não autorizada até ofertas de emprego em empresas públicas, a fim de inibir a atuação ambiental, até escutas e telefones grampeados. “Nós não somos uma instituição e nem organização da sociedade civil por opção”, Carvalho inicia a explicação. Não precisam e nem pedem vaquinha para se manterem na resistência pelo Meio Ambiente.
“O que fazemos não é algo fácil. A gente sofre perseguição e na maioria das vezes não sabemos quem são as pessoas que nos procuram. Quando sabemos, temos proteção do Estado”. Entretanto, em outras situações, o próprio Estado é quem os ataca. “Estamos nos dedicando, praticamente e exclusivamente, ao rio. O tanto de coisa que a gente já sofreu e a gente continua aqui, então é sinal para continuarmos, né, Newton? Passamos, inclusive, por atentados que não conseguimos registrar porque a polícia não quis”.
No final, nossa trilha matutina resume bem a esperança de vida dos três ativistas.
“Queremos mostrar o mais belo para que mais pessoas queiram proteger o restante das águas. Não adianta brigar só pelas cachoeiras, temos que brigar por toda a área. Nós não precisamos de muito dinheiro para viver, precisamos de qualidade de vida”, sintetiza Carvalho. Ao seu lado, Newton assente.
Quando não pensar as cidades é intencional, alagamentos são crimes ambientais
Salto do Itiquira, o mais conhecido ponto turístico de Formosa.
Formosa (GO) não leva esse nome à toa. É um lugar aconchegante, chama atenção por suas belezas naturais e é carinhosamente chamada de Berço das Águas do Cerrado - este quem já é o coração do Brasil, a força hídrica pulsante do país. A origem do apelido é científica: a cidade está sobre nascentes de três das maiores bacias hidrográficas da América do Sul: Amazonas, São Francisco e Paraná.
Para citar alguns dos lindos pontos de encontro de pessoas e biodiversidade, a memória busca o Salto do Itiquira, as cachoeiras do Indaiá, a Toca da Onça, o Buraco das Araras, a Lagoa Feia, o Buraco das Andorinhas, as cachoeiras do Bandeirinha, o Poço Azul, a cachoeira Água Fria, a Mata da Bica, o Recanto das Cachoeiras, a Caverna Escaroba, o Lago do Vovô e o Lajedo. São aproximadamente 36 nascentes espalhadas pelo coração hídrico, embora algumas já tenham sido soterradas para dar lugar à pavimentação de ruas e à construção civil.
Mata da Bica, importante ponto de encontro para lazer em Formosa.
A Reserva Ecológica Mata da Bica - hoje um dos principais pontos turísticos da cidade - conta com nascentes que percorrem toda a mata de galeria à sua volta, formando um lago artificial, onde está o famoso Deck da Mata, que escoa suas águas para o Córrego Josefa Gomes. Nosso protagonista, o Josefa Gomes habita o Bairro Jardim Califórnia, que passa pelo Parque Vila Verde e atravessa a BR-020. Principal condutor das águas pluviais da cidade, é afluente da Lagoa Feia, que logo encontra o Rio Preto e, por fim, abraça a bacia do Rio São Francisco.
Córrego Josefa Gomes em um dos pontos da cidade. Infelizmente, o Córrego não é um ponto de apreciação estética: suas imagens são sempre de denúncia.
Josefa Gomes enfrenta o mesmo dilema há décadas: quando as chuvas chegam, alagam o bairro, a água desenha marcas altas paredes, acelera o coração dos moradores e vira objeto de disputa política municipal. Vizinho urbano, ao longo dos anos de ocupação humana e infraestrutura da cidade, os formosenses enfrentam elevado nível de vulnerabilidades decorrentes dos alagamentos. As causas principais são a má estrutura de drenagem (como, por exemplo, a ausência de bocas de lobo): quando chove, a água não infiltra no solo devido à bacia hidrográfica já impermeabilizada. Dessa forma, a água corre pelas ruas e encontra o Córrego Josefa Gomes.
Este também é um problema de classe: os maiores impactados com as enchentes do Josefa Gomes não são os moradores de classe média alta de Formosa. Pelo reduzido poder aquisitivo, as pessoas impactadas pelos alagamentos são vulnerabilizadas pela dificuldade de acesso às soluções do problema municipal. Talvez isso te lembre o conceito de racismo ambiental e injustiça climática.
Grande parte dos habitantes de Formosa conhecem o Josefa Gomes pelo contato com espaços parecidos com este. Em outros lugares, como nas proximidades do Laguinho do Vovô, muitas crianças crescem acreditando que ele é apenas um esgoto a céu aberto. Créditos: Instituto Federal de Goiás.
Há mais de dez anos, o córrego foi parcialmente canalizado - agarrando a população na promessa de que os alagamentos reduziriam. Recebe também as galerias pluviais - que drenam significativo volume de água originários das nascentes em sua bacia hidrográfica -, esgoto urbano e considerável quantidade de lixo da cidade. Este último ponto se desdobra em outras questões ambientais, como a sobrecarga e comprometimento do fluxo hídrico do Josefa, quem lida com o volume excessivo dos resíduos e continuamente transborda.
Josefa Gomes seguindo o sentido da BR-020, estrada federal que inicia em Brasília e passa os estados de Goiás, Bahia, Piauí e Ceará.
Desde 2021, o governo municipal nutre a expectativa de implementação da segunda fase da obra de canalização, com o objetivo de resolver o contínuo problema de enchentes e alagamentos. Seria essa uma resposta plausível? Não.
Para lidar com a complexa e urgente questão enfrentada - a trancos e barrancos - pelos moradores de Formosa, é essencial a criação e aplicação de um Plano Diretor de Águas Pluviais e a estruturação de um sistema de drenagem urbana adequado. Quem explica isso com riqueza de detalhes e clareza é o geógrafo e professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG) Wilson Lopes Mendonça Neto, participante ativo na luta pela gestão correta das águas em Formosa.
A canalização é uma técnica ultrapassada para resolver problemas urbanos como enchentes e alagamentos, começa o geógrafo. Historicamente usada na estruturação de cidades, Wilson observa que os grandes centros urbanos no Brasil experimentam um remédio muito amargo em relação à canalização dos rios urbanos, especialmente ao ponderar o crescimento desordenado das cidades. “Pensando no aspecto da canalização, precisamos considerá-la dentro do planejamento urbano, no arranjo dessa infraestrutura e nos componentes que compõem a cidade. Entretanto, a canalização se revela, na prática, como um projeto isolado da prefeitura, desconectado da concepção geral da cidade”, complementa.
Em 2021, “quando a prefeitura apresentou para a população o projeto da segunda etapa da canalização, a proposta foi colocada como grande solução, mas com a falta de um plano concreto de drenagem urbana, o problema não será resolvido”, o especialista explica. “Quando há proposição de projetos desconectados da concepção de cidade, de forma geral, isso acaba agravando as enchentes”.
Alagamento na casa de moradores ribeiros ao Córrego, em 2020. Imagem do Corpo de Bombeiros municipal.
Wilson relembra que o projeto de canalização foi problemático - com erros sérios de estruturação e técnica -, que uma equipe de pesquisadores e especialistas - ligados ao Instituto Federal de Goiás, à Universidade Estadual de Goiás e à sociedade civil organizada - entrou com um processo junto ao Ministério Público estadual. Em 2022, a pasta embargou a obra: a investigação acolheu os apontamentos do grupo e adicionou ainda outros erros despercebidos no processo de denúncia do projeto municipal.
Nesse período, o grupo foi alvo de acusações, responsabilizados pelo embargo - a máxima “a culpa é dos ambientalistas” é algo muito comum quando uma obra com impacto ambiental é impedida de continuar. “Quem embargou a obra, quem proibiu o projeto de canalização foi um juiz que leu todos os argumentos, leu todo o processo e defendeu uma liminar que apresenta o projeto como equivocado, desde o ponto de vista da engenharia até o ponto de vista da concepção ambiental”, esclarece o geógrafo Wilson.
A disputa envolvendo o Josefa Gomes explicita que a falta de planejamento urbano e vontade política de pensar cidades saudáveis é, também, um projeto intencional. A ausência de suporte e soluções atende propósitos.
“Eu não acredito que a falta de planejamento seja um acaso e que os problemas ambientais e urbanos de Formosa sejam uma consequência desse acaso, como se alguém tivesse esquecido de planejar. Existem áreas da cidade que são muito bem planejadas. Será que lá tem enchente? Será que lá tem problemas desse tipo? A grande pergunta que eu acredito que precisamos fazer é a seguinte: por que determinadas áreas da cidade são muito bem idealizadas e outras não”?
O especialista continua:
“O planejamento é um instrumento e o ordenamento do território não é neutro, ele tem disputas. As classes sociais disputam o ordenamento. Existem áreas muito nobres da cidade que são planejadas e existem outras áreas em que a população de baixa renda ou uma classe média, por exemplo, ficam à mercê dessa suposta falta de planejamento. Mas não é bem isso! O poder público e os agentes produtores do espaço urbano - as grandes imobiliárias, as instituições financeiras, os comerciantes - não se mobilizam nesse sentido, no de bem planejar a cidade. Então, eu não acho que a falta de planejamento seria um acaso, um esquecimento da prefeitura. A falta de planejamento é carregada de intencionalidade”.
No cotidiano, quando a chuva vem, a intencionalidade se transforma em algo próximo de crime ambiental. Dezenas de famílias são frequente e diretamente impactadas pelas enchentes do Josefa Gomes. Wilson Lopes, quem acompanha de perto essa realidade, descreve uma imagem forjada em angústia.
“Você imagina, está de madrugada e chovendo, a água não para de entrar na sua casa e as pessoas tentam salvar o que conseguem, uma cama, por exemplo. Então coloca a cama em cima de tijolos, levanta a geladeira para a água não pegar… Na metade da parede, as marcas de água. Sem falar no risco de curto circuito: se aquela água entrar em contato com a rede elétrica, pessoas podem morrer”.
E acrescenta:
“Esse é um dos problemas do impacto direto da água, mas existem os indiretos, como a contaminação da água das enchentes ao entrar em contato com o esgoto. Eu fui em algumas casas que ficam nas regiões mais baixas e próximas do Josefa Gomes. Ver os bueiros de esgoto me fez pensar que, quando chove muito, a água da chuva se mistura com a água do sistema de esgoto e os bueiros explodem. Seria interessante fazer um mapeamento disso. É uma água escura que entra para a casa das pessoas, altamente contaminada. Mesmo depois que a enchente passa, o cheiro impregna na construção inteira. Não tem como você tirar aquele odor que fica depois. As pessoas perdem os móveis e sentem um impacto físico, financeiro, psicológico e de saúde. É uma tragédia.”
Alagamento no centro urbano de Formosa. Reprodução de vídeo.
Por mais que a construção e aplicação de um Plano Diretor seja a resposta mais integrada para esta situação, assim como as águas e as pessoas do Melchior, os formosenses têm pressa. Quem enfrenta alagamentos toda vez que chove não pode esperar dez anos para que o Plano e outra série de planejamentos e projetos complexos entrem em prática.
“As pessoas já estão morando na área de risco. Pelas informações que temos, são aproximadamente 30 casas vulneráveis. São graus diferentes de alagamento: tem casa que a água entra na garagem, tem casa que a água entra na cozinha e no quarto, já outras são completamente inundadas. Certamente que essas pessoas não podem esperar dez anos por uma solução, não é justo. O poder público precisa apresentar uma solução e fundamentalmente tirá-las das áreas de risco de alagamento e colocá-las em espaços de moradia digna, é isso que precisa ser feito do ponto de vista emergencial e a curto prazo. Não tem outra coisa para fazer, porque esse problema se repetirá no ano que vem e no próximo e no próximo”, ressalta Wilson.
Com a crise climática, as estimativas para o cenário de riscos ambientais e vulnerabilidades se agravam. Formosa é um município goiano com alto risco para agravo de desastres geo-hidrológicos como inundações, enxurradas e alagamentos, alerta a plataforma Adapta Brasil. Em um intervalo de seis anos, do presente para 2030, a cidade sai de risco médio para alto, no cenário otimista e pessimista das emissões de gases do efeito estufa.
Os impactos desses eventos serão maiores e mais drásticos nas realidades de pessoas de classe baixa e de populações racialmente vulnerabilizadas.
“Nós estamos no mesmo oceano de problemas, mas esses eventos climáticos vão atingir muito mais as populações pobres e de baixa renda do que as populações ricas, simplesmente pelo fato de que as populações ricas têm recursos para lidar com a crise e as populações pobres, não. As clivagens sociais, as contradições postas em termos de desigualdade de classes, se apresentam como um dado da realidade das mudanças climáticas que estão em curso também”, sintetiza o professor Wilson.
2024 é ano de eleições municipais e, por isso, não podemos deixar de acrescentar o fator político nas decisões urbanas e as consequências ambientais atreladas ao voto consciente. Wilson Lopes avalia que a realidade de Formosa é, também, um problema político.
“É uma situação muito complexa. A solução não é apenas ter o Plano Diretor de Águas Urbanas, ele não pode ser só um documento que vai ficar engavetado. É preciso executar esse plano. Isso significa obra pública, é necessário criar infraestrutura urbana. Qual é o problema? Por que o poder público municipal não gosta de fazer esse tipo de obra? Porque é uma obra que fica enterrada depois, ela fica escondida e isso não dá voto, mesmo que seja uma obra muito importante do ponto de vista ambiental e para a qualidade de vida da população de Formosa”.
“Eu acredito que a situação pode mudar a partir da tensão do poder público. A sociedade civil organizada - pesquisadores, você e as pessoas que moram nas áreas de risco - devem tencionar o poder público para que, politicamente, crie as articulações necessárias para que projetos como, por exemplo, o Plano Diretor de Águas Urbanas, de fato seja desenvolvido e implementado. Temos que agir em conjunto, não só esperar uma solução. O poder público tem os recursos para fazer as mudanças. E se o poder público municipal não tem recurso, que corra atrás”, o geógrafo e professor finaliza.
Aterrou nascentes como se fossem múltiplas
Rio Meia Ponte, em Goiânia (GO). Crédito: MeiaPonte.org
Em uma capital tão urbanizada como Goiânia (GO), o contraste entre Natureza e cidade é evidente e palpável no convívio cotidiano. Rios maiores chamam a atenção e são vinculados diretamente ao lazer e ao laço emocional, ao passo que córregos e mananciais de médio e pequeno porte estão distantes do coração social e político, destinados ao valor simbólico de esgoto urbano.
Para outros usos moralizantes, os cursos d’água morrem abaixo de estruturas viárias. São aterrados como se fossem múltiplos, como se, de onde veio aquela, outras facilmente surgissem em lugares melhores. Afinal, por que aquele rio não habita um espaço melhor, mais nobre?
Esse pode ser o destino do Córrego Jaó, nem o primeiro e muito menos o último curso hídrico com essa história. Ao longo de 2023, a Prefeitura de Goiânia apresentou a obra de duplicação viária sobre a Área de Preservação Permanente (APP) onde habitam as nascentes difusas que formam o Córrego Jaó, afluente do Rio Meia Ponte. Como qualquer obra urbana em área protegida, o projeto prevê desmatamento, terraplanagem e compactação máxima do local. A movimentação para construir no local acontece desde 2021, quando o Ministério Público do estado paralisou as obras.
Moradores do Setor Jaó propuseram alteração do traçado da via para contornar as nascentes, o que, até então, está sendo ignorado pela Prefeitura de Goiânia. Em julho de 2023, foi editado um decreto que declarou situação de emergência hídrica na bacia do rio Meia Ponte, responsável por aproximadamente 50% do abastecimento de Goiânia e da região metropolitana.
A Bacia Hidrográfica do Rio Meia Ponte habita o centro-sul do estado, vizinha de 39 municípios goianos em nosso Cerrado, incluindo a região metropolitana de Goiânia e polos industriais e agroindustriais. Aproximadamente 40% da população de Goiás está concentrada em 4,2% do estado, coincidindo com a extensão do rio, adjetivando-o como a principal bacia hidrográfica goiana.
Organizações civis questionaram a proposta do governo municipal, apontando os problemas em expedir licença ambiental para uma obra tão nociva ecologicamente. De acordo com a nota pública movida por entidades sociais da capital, o processo de licenciamento não menciona as nascentes de Jaó e nem que a obra está programada para enterrá-las.
De acordo com dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) de 2021, mais de um quarto do esgoto coletado em Goiânia volta para os cursos hídricos sem receber qualquer tratamento - dentre eles, o rio Meia Ponte. 72,46% da água utilizada pelos moradores é tratada pelo sistema de esgoto captado na cidade - o patamar adequado é 80%.
O cotidiano desumaniza as relações. Existe uma frase que diz “o familiar mata as sutilezas” e talvez essa seja uma verdade para a relação entre humanidade e rios urbanos - ou qualquer outro traço explícito da Natureza nas grandes cidades. Como se ignora um rio? Criando pontes e viadutos, afastando-o e apagando-o das discussões, deixando-o apenas para as pessoas que inevitavelmente têm que lidar com ele. Será que, se elas pudessem, fariam que nem a maioria da população de Goiânia? Fingiriam que o Meia Ponte, que ao longo da história de ocupação da capital foi um símbolo tão latente de vida e esperança, simplesmente não existe?
De tanto torcer, talvez vire verdade. Ele deixa de ser rio para ser fonte de abastecimento. Ou apenas esgoto a céu aberto. Qual a diferença entre esses dois termos - rio e recurso -, um pássaro consegue distinguí-la? A pessoa que rega sua plantação, ribeira há gerações, chama o Meia Ponte de um ou de outro?
Porque o rio é repositório de lixo e efluentes. Carrega consigo a memória chocante de que, em apenas uma pequena metragem, 130 pneus foram retirados. Quando sai no jornal, não é um personagem animado de histórias bonitas, reluzentes e com cheiro de vida. É para noticiar que a Segunda Expedição do Rio Meia Ponte retirou mais de 160 toneladas de lixo.
Infelizmente, este título da reportagem também fala de uma notícia angustiante. Espero que, para essas aves, o rio seja fonte de algum tipo de felicidade explícita. Sem precisar se esconder na água barrosa, abaixo do cimento de viadutos ou da justificativa utilitária - e, portanto, violenta - do dito desenvolvimento humano.
Local de lançamento de esgoto no Meia Ponte. Fica a reflexão sobre o direito das águas e dos animais. Crédito: Diomicio Gomes.
Mudinhas são as mais ágeis armas contra lixões
Os Guardiões do Meio Ambiente, representados por Giovanna Lira (SOS Ribeirão Sobradinho), Leandro Vieira (Guardiões do Canela de Ema) e Antônio Moura (RRP Moura)
Entre as ruas de Sobradinho, existe um tesouro. Criado por Antônio Moura, o projeto Revitalização, Reciclagem e Preservação Moura (RRP Moura) é uma área verde parecida com um parque ecológico de livre acesso, onde habitam nascentes; um simpático laguinho com peixes e uma particular carpa solitária, ativa no combate às larvas do aedes aegypti; buritizais, trilhas e um trator para crianças brincarem, inteiramente feito com pneus reciclados. Juntos, compõem um importante espaço de lazer e conforto do Cerrado.
Em um espaço que lentamente se transformava em um lixão, Antônio Moura protege com unhas, dentes e muitas mudas de árvores as águas daquela região, importantes afluentes para o Ribeirão Sobradinho. Os 15 anos lutando e trabalhando para o melhor da RRP Moura já trouxeram grandes frutos para a proteção da biodiversidade da região administrativa e de todo o Distrito Federal.
POV: você acabou de chegar na RRP Moura.
Um exemplo de peso é a presença da Lobelia brasiliensis, planta endêmica do DF e ameaçada de extinção. Foi descoberta ali, no parque. Sua floração roxa poderia estar enterrada sob escombros de um lixão, caso vivêssemos em uma realidade paralela onde Antônio não estivesse interessado em acabar com o lixo da área em frente a sua casa.
Ao centro da foto, com o formato que lembra uma espiga de milho, está a lobélia, com suas flores roxas.
Espécie endêmica do Cerrado do Distrito Federal, o que significa dizer que só foi encontrada aqui, em terras candangas. Foto por Mauricio Mercadante.
“Aqui, várias coisas se uniram para dar certo”, sintetiza Leandro Vieira, representante do coletivo pela proteção do Parque Ecológico Canela de Ema, em Sobradinho II. Juntos, os ativistas pela RRP Moura, pelo SOS Ribeirão Sobradinho e pelo Guardiões do Canela de Ema compõem o grupo Guardiões do Meio Ambiente, me explica Giovanna Lira, voluntária engajada do SOS.
Assim que chegamos no parque, Leandro nos mostra, orgulhoso, as duas nascentes protegidas. Com duas caixas d’água e muitas plantas (esponjas naturais), Moura conseguiu restaurar o fluxo sufocado: em uma das nascentes você pode se refrescar (o que as crianças amam fazer ao assistir as aulas de educação ambiental) e, na outra, encher sua garrafinha de água.
Nascentes fluindo na RRP Moura.
O mais recente desafio de Moura é a horta local: nos últimos dias, passa horas no parque organizando o cercamento - feito com fios reutilizados - e separando as mudas novas para plantar ali. Não que o espaço destinado para o recente esteja sem vegetação! Pelo contrário. Ao conhecê-la, enchemos as mãos de pitanga, petisco ao assistir a história viva de Antônio. Cumprimentos às batatas diversas, as bananas e o mastruz.
“Há alguns anos, o campo de futebol aqui do lado foi drenado, então, por meio da própria gravidade, direcionei a água retirada - que não estava sendo aproveitada - para o lago. E é com esse redirecionamento que a horta se manterá”. Uma pessoa com o ouvido treinado para reconhecer pássaros e anfíbios se diverte em uma tarde naquele parque: são aproximadamente 120 espécies de aves diferentes e diversos sapos. Se eu fosse um pássaro, também gostaria de ficar ali: tem de tudo, mamão, pitanga, amora, abacate, cana-de-açúcar, abóbora, orapronóbis e limão.
Morada da carpa, agente contra as arboviroses. Da esquerda para direita, Leandro Vieira e Antônio Moura.
Desde o começo, a principal ferramenta contra a poluição é plantar árvores. “Até pouco tempo atrás, quando as pessoas começavam a jogar lixo aqui de novo, o método foi o ‘mudinhas nelas’!”, brinca o ativista, morador de Sobradinho há 36 anos. Não que tenha sido fácil. Na verdade, esse é um distante adjetivo para qualificar a luta de Moura na região. “No começo, a polícia chegava aqui perguntando o que eu estava fazendo… Então eu mostrava as fotos do antes e o quanto de lixo foi gradualmente retirado e substituído por árvores.”
O desafio de Antônio é contínuo e diário. “Como este local ficou fora do mapeamento de áreas para conservação, um dos nossos planos é transformar aqui em um parque urbano, para receber verba e estrutura de parque, porque é muito cansativo fazer tudo isso aqui com o dinheiro do próprio bolso. Ter esse reconhecimento, estrutura e apoio do governo seria muito interessante”, explica Leandro.
Para muitos moradores próximos ao parque, as responsabilidades se confundem. Vez ou outra, alguém passa ao Moura a demanda de, por exemplo, limpar a vegetação crescente de capim na área do parque. E, de fato, o espaço precisa de constante limpeza do campo, mas essa não é uma responsabilidade da administração. Quando perguntamos se Moura tem apoio da representação ou de outras repartições públicas, o ativista ri ironicamente, afinal, “raramente” é a resposta.
Simbólico, o aniversário da luta pela RRP Moura é o dia 22 de março. Desde o começo, os recursos - de trabalho e financeiros - são de Antônio. Moura começou a trabalhar naquele vir-a-ser parque após perder o trabalho. Quando conseguiu emprego como vigilante no IFB Campus Planaltina, acompanhou diversas palestras com caderno e caneta, preparado para anotar o que for preciso e aprender mais sobre plantio e cuidado do meio ambiente. “Eu tinha uma boa noção das coisas, afinal, nós nordestinos sempre sabemos um pouco sobre plantas”, puxa o fio da memória. Começou, então, a ir às escolas para divulgar o trabalho ambiental no início do projeto, mas não recebeu muita atenção.
Antônio fica pequenino diante da força de seu legado.
Agora, o parque é destino de passeio para muitas escolas, onde as crianças aprendem educação ambiental em contato com as nascentes. Ao longo da trilha, há um espaço nomeado por Moura de “boca da princesa”, onde os mais jovens se aproximam de um claro exemplo dos conflitos envolvendo proteção ambiental: o descarte de efluentes e o quão é importante um tratamento responsável e comprometido. Apenas em 2023, Moura deu aula para mais de mil alunos.
As crianças fazem o mesmo trajeto que trilhamos naquela terça-feira de março. Alguns metros após o cemitério de cachorros, as placas de identificação para o começo da caminhada aparecem. Ao olhar atentamente para o chão, é possível ver ainda peças de entulho enterradas, de um passado que felizmente não virou presente. Ao nosso redor, goiabeiras e, na parte mais baixa e brejada, buritis e lobélias.
Estamos no Recanto de Preservação da Lobelia Brasiliensis.
Entrada para a trilha. Da esquerda para direita: Giovanna Lira, Antônio Moura, Isaac Elias - apoio d’A Vida no Cerrado -, Maria Alice e Leandro Vieira.
“Esta área iria virar mais uma pista ligando Sobradinho à BR-020”, começa Moura, “mas como mudaram o sistema e colocam um ponto de tratamento de esgoto da Caesb aqui próximo, deixaram esse espaço, que era cheio de lixo de obras. Para você ter ideia, na época, quando o parque estava crescendo, a administração contratou um caminhão para retirar o entulho e ele saiu completamente cheio. Esse tipo de apoio é raro, depende muito da boa vontade do administrador”, completa.
Se as serras-elétricas fizerem parte da paisagem sonora da caminhada - como aconteceu ironicamente em nossa visita -, as crianças saberão que aquele espaço está cercado por uma ameaça latente e muito difícil de ser vencida: a especulação imobiliária.
Abrindo caminho quando a mata de galeria adensa com o fiel facão - amigo de longa data do ativista -, Moura explica as razões de cada espaço identificado por uma plaquinha ao longo da trilha. O Jardim da Mata afirma a agência jardineira, quem escolhe e cuida da vegetação. Responsável como só a mata consegue ser. Logo depois, a Ponte Mirim, em homenagem às crianças que a atravessam, seguida pela Ponte da Vida.
Ilha da Samambaia
A Ilha da Samambaia é autoexplicativa: ao nosso redor, a água do riacho se mistura com a água do esgoto tratado e, antes de encontrar o Ribeirão Sobradinho, se une a mais dois afluentes, o que ajuda a melhorar a qualidade do corpo hídrico. Entretanto, não é o suficiente. Leandro e Moura explicam que a qualidade do Ribeirão ainda não é a ideal, especialmente porque existem chácaras que molham a plantação com a água que desce, apesar de não ser recomendado. Em um caso específico, um grupo de pessoas banharam na Cachoeira do Gancho, onde parte daquela água da Ilha da Samambaia segue. Como consequência, as pessoas pararam no hospital, com forte alergia e outros sintomas. Mesmo com placas proibindo, o turismo ainda acontece em áreas próximas que não garantem a segurança da água.
Como uma cortina, os altos pés de copaíba nos acompanham, sombreando a rota e escutando a serra elétrica na área fora do parque.
“Deve ser alguém limpando a vegetação para fazer poços artesianos”, Leandro chuta um palpite. A expansão das construções ao redor do parque é a maior preocupação dos Guardiões do Meio Ambiente. O barulho dos brejos e córregos parecem concordar com o temor dos humanos.
Uma das empresas de habitação envolvidas com a ocupação nas proximidades é a Urbitá, empreendimento que pretende trazer 180 mil habitantes para aquela área em Sobradinho, explica Leandro. “O projeto habitacional busca transformar o espaço em um novo Noroeste, de alto padrão. O problema é que o espaço destinado para o projeto é exatamente onde acaba a mata de galeria. Se eles cercarem, podem fazer o que quiser”, continua.
Moura adiciona que uma das promessas é manter o parque como área de preservação do Urbitá. O ativista torce para que eles saibam fazer corretamente e com responsabilidade essas habitações, caso contrário, o dano ambiental será drástico.
Tudo é justificado com o almejado desenvolvimento e progresso a todo custo, critica o ativista mais velho. “As pessoas só parecem esquecer que elas não conseguem comer concreto”, lamenta. “São mais de 3 mil árvores plantadas aqui. As pessoas estão sentindo na pele as doenças que vêm pelo mal trato ao Meio Ambiente, antes da epidemia de dengue que estamos vivendo agora veio a pandemia de Covid-19”, relembra.
Mata de galeria ao longo da trilha.
Nesses 15 anos dedicados ao parque, Moura elenca mudanças que chamaram sua atenção. Uma delas é a qualidade do ar - o mal cheiro reduziu significativamente. Para ele, um desejo ao futuro é que mais pessoas se importem com os espaços que estão claramente sendo cuidados por alguém e, quem sabe, desejem cuidar e preservar junto.
“O que eu faço aqui, este meu trabalho integral, eu faço por mim, aos netos e aos outros. A intenção é que seja um projeto que se mantenha para o futuro, mas quero ficar aqui mais quarenta anos e ver isso acontecer! As pessoas não sabem quantas vezes pensei em desistir disso aqui - foram muitas! -, por falta de colaboração, patrocínio e apoio. Mas então alguém colabora com um PIX para pagar os materiais daqui, por exemplo, e isso dá uma impulso. Depois paro de novo, descanso, volto, escuto alguém dizer para largar de mão… E eu digo que não quero, mas fico cansado, paro um pouco, dou uma viajada… E depois volto. É assim. Fico aqui 24h. Se eu não tivesse feito isso aqui, seriam várias invasões, ao invés desse espaço de proteção”, desabafa.
Moura conta que, apesar da esperança da RRP se transformar em um parque urbano com o apoio devido que a classificação exige, o espaço pode também ser identificado como uma área restrita para o Refúgio da Vida Silvestre, por exemplo. “Meu trabalho, então, seria em vão? Sinto que não, de jeito nenhum! Posso perder o contato direto com o espaço, mas vou observar de longe. Se me contratarem para trabalhar com ele, irei. São 15 anos e vai ficar marcado, é história. A luta foi difícil, foi feia, mas eu fiz e faço o melhor trabalho ao meu alcance”.
Caminhar por entre aquelas árvores é atravessar memórias. “Plantei essa aqui, ela era só uma mudinha pequena”, Moura lembra com carinho ao tocar uma goiabeira. “Antes, não tínhamos esse tanto de buriti. Com o tempo, foram se tornando vários. Se não souber andar por ali, afunda! É bem alagado”, adiciona, os passos rápidos acompanhando as palavras.
“Minha infância foi chegar aqui e pegar palha do buriti para fazer pipa. Chegava em casa e recebia bronca, porque perdia chinelo e tudo”, relembra o fotógrafo e ativista Leandro Vieira.
O legado de Moura vai além do parque e de suas próprias histórias.
“Soube que na Secretaria do Meio Ambiente aqui do DF existe uma ideia de se inspirar no modelo da RRP Moura para criação de novos projetos de parques em outras cidades, para melhorar a qualidade de vida das pessoas. Nós, Guardiões do Canela de Ema, nos inspiramos nele. Estamos tentando acabar com os lixões assim: plantamos uma muda depois de fazer a limpeza, então ligamos para a administração apoiar e assim vai. Com isso, diminuiu muito o lixão e impede o crescimento de lixõeszinhos que volta e meia aparecem”, Leandro compartilha. Com perseverança, plantam árvores para que os lixões acabem.
Nos despedimos das copaíbas, ao fim de uma agradável - porém quente - terça-feira à tarde na RRP Moura
Guardiões do Refúgio da Vida Silvestre Canela de Ema
Nascido do fogo, os guardiões do Canela de Ema se juntaram em 2021 após um incêndio florestal que matou duas capivaras na região. “Havia muito lixo na área do refúgio e o pessoal decidiu fazer um mutirão de limpeza. A partir daí fomos crescendo e fortalecendo a causa”, explica Leandro Vieira, “a própria comunidade nos nomeou como guardiões”.
Em breve, o refúgio virará uma grande unidade de conservação, abarcando outros pontos protegidos. É uma notícia, adiciona o fotógrafo e ativista, “a parte ruim, porém, é que será uma unidade de conservação permissiva para espaços particulares dentro da delimitação, não será cercada, e isso dificulta a proteção e fiscalização do Canela”, conclui.