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Foto do escritorA Vida no Cerrado

Em seus barulhos tectônicos, Terra Ronca é Cerrado gritando por vida

Atualizado: 31 de jul.


Cercado pela monocultura predatória e suas drásticas consequências ambientais, a região do Terra Ronca — parte remanescente de Cerrado goiano nativo —, já está vulnerável ambiental e climaticamente



por Maria Alice, Núcleo de Comunicação*

Entre a Serra Geral baiana e o goiano Morro do Moleque, o povoado de São João é lar de cavernas apaixonantes, veredas emolduradas por buritis centenários, araras-azuis e vermelhas e gente que ama o Cerrado como um querido e poderoso avô. Localizado no município de São Domingos, em Goiás, o povoado lida com desafios diários ambientais e climáticos: os incêndios florestais aceleram o coração apreensivo; o cerco do agronegócio acima da Serra ameaça a qualidade e garantia da água, tanto no lençol freático quanto nos rios e córregos.


O nível dos córregos e rios já diminuiu drasticamente e, quando a seca vem, a falta d’água é uma preocupação sazonal. A segurança hídrica atravessa duas práticas da agricultura predatória: os super poços artesianos e o uso intenso de agrotóxicos. O desmatamento decorrente da abertura de novas áreas para produção de commodities, além de intensificar a seca e a produção natural de água na região, vulnerabiliza o solo das áreas altas e amplia o risco de desmoronamentos — algo que já aconteceu no povoado.


No vale da Serra, no chão arenoso e laranjado de São João Evangelista, os moradores querem fazer do cuidado pelo Cerrado uma prática cultural e também de subsistência. Lar de cavernas, frutos das ações mais criativas da Natureza e sua sapiência, o turismo é fonte de renda de significativa parte da população local, assim como o extrativismo e a pecuária familiar. São João, com suas paisagens verdes — remanescentes da vegetação nativa do Cerrado —, biodiversidade pulsante, cachoeiras de tirar o fôlego, águas límpidas e um dos maiores complexos de cavernas da América Latina, tem atrativos para estruturar um forte ponto de ecoturismo.


O turismo se mostra um dos caminhos e sementes de construção de um futuro intrinsecamente conectado com o cuidado pelo bioma. Uma das esperanças e de que, assim — quem sabe? — a conservação do Cerrado se transforme em prática cultural e educacional em São Domingos e arredores


Esse é um dos sonhos da comunidade, expresso nas reuniões de maio para construção da Carta de Direitos Climáticos da Terra Ronca. Construída pensando em esperanças, desafios, sementes, mudanças e muita ação coletiva, a Carta é uma iniciativa da organização internacional Climate Reality, realizada no território em parceria com A Vida no Cerrado.


Estimado para lançamento em agosto, o documento é uma fonte de dados e reivindicações com potencial para subsidiar políticas públicas e ações municipais. Dessa forma, é possível fomentar a sustentabilidade da comunidade do povoado de São João e de São Domingos, especialmente porque a Carta é pensada a partir da relação entre os moradores locais com o Cerrado, a Reserva Extrativista de Recanto das Araras de Terra Ronca e o Parque Estadual Terra Ronca. 


Apenas uma semana em São João Evangelista e uma reportagem especial não são o suficiente para contar esta história. Uma história de amor, ancestralidade, respeito, conflitos e bravura. De qualquer modo, tentaremos.


Parte dos autores da Carta de Direitos Climáticos de Terra Ronca, reunidos, ao longo de dois dias, na sala comunitária do povoado de São João Evangelista. Crédito: The Climate Reality Project.



São Domingos e Terra Ronca enfrentam poderosos titãs


Visitante, quem chega logo descobre que o primeiro dos titãs preda água de córrego, lagoa, riacho e lençol freático.



Terra Ronca, água canta


Ao nordeste de Goiás, vizinho da baiana Correntina, o município de São Domingos é abraçado pelas águas do Cerrado, especialmente envolto por seu rio homônimo, espelho do céu cheio de estrelas, do estalar do sol e do aconchego das nuvens. Talvez o município seja do rio, ao invés do contrário.


Lar de pouco menos de 10 mil pessoas espalhadas por aproximados 3 milhões de quilômetros quadrados, São Domingos tem como cartão postal monumentais cavernas, cachoeiras e veredas de encher os olhos. Envolto por serras e escarpas, seu céu, durante o dia, adiciona um tom novo às cartelas de cores azuláceas. À noite, uma moradora da cidade como eu encontra estrelas estranhas à selva de pedras. Privilégio, estrelas cadentes se exibem como quem diz, diante do meu espanto: “bem-vinda, somos sempre belas assim”.


O contraste da paisagem é drástico, como aquelas imagens dramáticas de desmatamento. Ao nos distanciarmos do monocultor Distrito de Rosário — parte do oeste de Correntina (BA) — e entrarmos nas baixas terras goianas de São Domingos, árvores de variados tamanhos e mato rasteiro nos encobrem, vestindo morros, emoldurando as estradas e protegendo os múltiplos veios d’água da região. Estamos em território cerratense ainda preservado, parte dos 48% remanescentes de vegetação nativa do bioma.

 

Acima da Serra, a monocultura radicaliza a paisagem do Distrito de Rosário, um mural de soja, algodão, milho e café. Para dar conta de uma das áreas mais produtivas de Correntina, silos enormes se estendem como morrinhos e, ao redor da estrada, empresas de agrotóxicos, fertilizantes, maquinários e suporte hídrico caminham paralelamente às extensões de commodities. É o desenho de um crescimento meteórico nos últimos trinta anos: a produção de soja no Distrito cresceu mais de 10 vezes nos últimos trinta anos, passando de 30 mil hectares, em 1980, para 371 mil hectares, em 2019, estima a Associação dos Produtores de Soja no Brasil (Aprosoja).


No sopé da Serra Geral, as águas do Parque Estadual do Terra Ronca testemunham o hiper-desenvolvimento do agronegócio baiano. Entre 1985 e 2022, as águas superficiais do Parque Estadual de Terra Ronca — rios, córregos, lagos e riachos — reduziram drasticamente. Saíram da máxima de 7 hectares de água, em 1986, para menos de um hectare, em 2022. Num extremo, chegaram ao mínimo de zero hectare em 2021, segundo os dados do MapBiomas Água.


USO DO USO DE SOLO EM TRÊS TERRITÓRIOS, AO LONGO DE 2022

Uso do solo em três territórios: São Domingos (GO), Correntina (BA) e Parque Estadual Terra Ronca (Peter), localizado em São Domingos e Guarani de Goiás (GO). Fonte: MapBiomas.


Legenda:




Pelos dados do MapBiomas, a maior parte do uso do território de São Domingos é dedicada para a agropecuária (56,63%) — em maioria para pastagens e espaços onde agricultura e pecuária coexistem —; em segundo lugar estão vegetações florestais (cerradões e matas de galeria e ciliar), em 31,32% do município; e vegetações não florestais (como as áreas campestres do Cerrado, por exemplo) ocupam 11,44% do território. Quando analisamos os usos do solo da vizinha Correntina, 39,29% do município é direcionado para agropecuária, concentrando-se no lado oeste do território, assim como em São Domingos. 48,19% e 12,11% da cidade baiana é formação florestal e não florestal, respectivamente.


É por isso que, nas reuniões para construção da Carta de Direitos Climáticos de Terra Ronca, a expressão “ser estrangulado pela agropecuária intensiva” apareceu algumas vezes. É um cerco que carrega consigo diversos e predatórios impactos.


Em Rosário, as áreas de irrigação intensiva consomem grandes volumes de água subterrânea e superficial, que somado ao impacto dos poços artesianos, pode acarretar uma redução da recarga dos aquíferos, afetando também as nascentes de rios que descem a Serra. A extração de água em níveis superiores à capacidade de recarga natural causa o rebaixamento do lençol freático, e a redução dos níveis de água subterrânea e superficial afeta diretamente a disponibilidade hídrica abaixo da Serra”, explica o engenheiro florestal Joaquim Raposo, pesquisador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM).


Outra área de conservação, na Reserva Extrativista (RESEX) de Recanto das Araras de Terra Ronca, a disponibilidade de águas superficiais varia entre pouco mais e pouco menos que um hectare, chegando a zero em 2021 e mantendo-se ali até 2022. É nessa RESEX de 12.349 hectares que o povoado São João está localizado, onde gerações de famílias coexistem com o Cerrado nativo e as cavernas. Gradativamente, nos últimos anos, também convivem com a preocupante seca e a redução do fluxo dos riachos, córregos e das chuvas.


Para os moradores, existe uma relação direta entre o intenso uso do solo para a monocultura — incluindo a predação da água — com a intensificação da seca localmente, somado aos fatores de agravamento climático em todo o país. O pesquisador Joaquim contextualiza que “o uso descontrolado dos recursos naturais tende a agravar os efeitos de seca”, entretanto, alerta que, para afirmar com segurança os impactos e consequências do monocultivo baiano no povoado de São João, “são necessários estudos diretos e de campo para poder avaliar as relações entre redução de vegetação nativa, aumento da agropecuária e redução de disponibilidade hídrica”.


É por isso que o incentivo à pesquisa na região de Terra Ronca é uma das demandas no território. Ao longo das reuniões para construção da Carta de Direitos Climáticos, os moradores destacam que, junto com a presença de pesquisadores, é necessário que os resultados das investigações voltem para a população. Os dominicanos querem saber sobre a qualidade da água que tomam, águam suas plantações e hidratam seus animais. Querem saber da saúde das águas e do ar, se no fogo controlado podem ou não confiar, se a expectativa para a seca é o constante piorar.




E nessa água tem veneno?


“A água que tomamos é de qualidade?”, questiona Maria da Silva, as palavras vestidas com a seriedade que o tema requer. Professora aposentada, tem o olhar de quem conhece e ensina sobre o Cerrado.


“Essa agricultura que temos ao nosso redor, que está nos prejudicando muito, já traz o risco de ficarmos sem água, por conta dos poços artesianos. O alimento não é para matar a fome do brasileiro, é, muitas vezes, para alimentar o mercado no exterior. Nós ficamos à mercê, com alimento contaminado de agrotóxico e com a água contaminada também. Será que nos alimentamos de produtos de qualidade?”, reforça a questão.


O receio de contaminação das águas não é uma preocupação isolada. Ao contrário: ressoa como o vento forte do povoado, um coro de temor pelo uso de agrotóxicos nas lavouras acima da Serra Geral. Infelizmente, a apreensão do povoado de São João se repete por todo o país e, em especial, nos demais municípios do Cerrado.


O Brasil é um dos maiores consumidores de veneno no mundo. Apenas em 2021, o relatório da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) demonstra que o país utilizou mais agrotóxicos nas lavouras do que a China e os Estados Unidos juntos. Foram aplicadas 719,5 mil toneladas de venenos, comparado a  244 mil toneladas utilizadas pela China e 457 mil toneladas nos Estados Unidos. Isso significa 3,31 quilos de agrotóxicos por brasileiro e 10,9 quilos de veneno aplicados por hectare de lavoura no país.


Em terras cerratenses, a situação é grave. Apenas em 2018, 73,5% do agrotóxico do país foi utilizado no Cerrado, o equivalente a mais de 600 milhões de litros de venenos. É o que mostra o artigo “Ecocídio nos Cerrados: agronegócio, espoliação das águas e contaminação por agrotóxicos”, publicado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). As consequências desse despejo podem ser percebidas, inclusive, na qualidade do ar que respiramos.


O artigo denuncia o ecocídio no bioma, decorrente especialmente da atividade predatória do agronegócio. São mais de 110 milhões de hectares ocupados pela prática econômica, preparados para produzir 75% das commodities soja-cana-milho-algodão do Brasil e pastagem direcionada à carne bovina.


Os autores denunciam o desmatamento da vegetação nativa e o “consumo de 91,8% das águas superficiais e subterrâneas usadas na irrigação por pivôs centrais, resultando na migração de nascentes, na interrupção dos fluxos dos rios e na redução dos volumes dos aquíferos, como se aprofunda na análise dos conflitos em curso no oeste da Bahia e na bacia dos rios Formoso e Javaés/TO”. Vale relembrar que essas práticas intensivas ameaçam os 48% do Cerrado nativo remanescente, em que boa parte dessa vegetação nativa está localizada no nordeste e norte  do estado de Goiás. Incluindo no município de São Domingos.


Como consequência do predatório agronegócio, as taxas de intoxicação exógena e câncer infanto-juvenil no Cerrado são maiores que as médias nacionais, complementam os autores do artigo, apontando para o impacto social dos venenos de lavouras.


As águas e cavernas de Terra Ronca são companheiras milenares.



A intoxicação por agrotóxicos vai além do contato “direto” com o veneno. Ela pode acontecer, simplesmente, pelo ar. É o que mostra o estudo desenvolvido por pesquisadores do Instituto Federal  Goiano, publicado em 2023. Nele, os pesquisadores percebem que a morte de líquens é influenciada pela exposição ao glifosato — um dos pesticidas utilizados para conter ‘ervas daninhas’. Essa observação demonstra o alcance do veneno até em áreas que deveriam estar protegidas. 


As amostras analisadas foram retiradas de Áreas de Preservação Permanente no estado de Goiás, algumas localizadas em propriedades privadas com monocultura, outras em Unidades de Conservação de Proteção Integral (UC) — espaço onde, teoricamente, os líquens não deveriam ter contato algum com o agrotóxico. Entretanto, apesar da restrição de atividades agropecuárias, os pesquisadores encontraram metais pesados do glifosato nas amostras da unidade de conservação Parque Nacional das Emas. A contaminação pode ter acontecido pelas águas subterrâneas e correntes de ar após a pulverização aérea — esse é o chamado efeito deriva, contextualizam os pesquisadores.


Ao trazermos esse contexto para a realidade do município de São Domingos e do povoado de São João, os dados demonstram que os territórios já estão vulneráveis apenas por fazer fronteira com o Distrito de Rosário, região extremamente produtiva em Correntina, parte do oeste baiano. O impacto do agrotóxico utilizado na Serra — aplicado, inclusive, também por pulverização aérea, método ainda mais contaminante — é denunciado pela comunidade local. A pauta faz parte da conversa de café da manhã, aumenta o calor do café, queima mais forte a garganta e o peito.


“A presença de lavouras próximas de povoados é sempre um problema. Primeiro porque são usados vários produtos e eles não são usados de forma individual, são usados em mistura. No caso da soja, há o uso de herbicida e também relatos de uso de inseticida e fungicida”, começa Daniela de Melo Silva, biomédica e doutora em genética, especialista em estudos de impacto do agrotóxicos na saúde humana e de outros animais. O impacto negativo na saúde é potencializado ao misturar as substâncias.


Esses resíduos de veneno podem ser carregados para a água — por infiltração, chegando ao lençol freático, ou diretamente, para as águas superficiais. Como grande parte das populações em áreas rurais utilizam poços artesianos como fonte hídrica — inclusive o povoado São João —, as chances de contaminação aumentam, já que a água dos poços não tem tratamento.


“Existem já relatos produzidos a partir da análise da água do Cerrado que mostram a contaminação e a presença de vários agrotóxicos, não só um. Isso tudo é muito preocupante. Esses produtos também vão para o solo e podem causar a morte de vários animais. Temos visto a perda de diversidade, como as abelhas — sendo organismos fundamentais para a polinização —, então é realmente um problema”, continua a especialista, também professora Universidade Federal de Goiás, no Instituto de Ciências Biológicas.


O povoado de São João tem forte interesse em saber a qualidade da água que bebem, tanto para reivindicar fiscalização dos poluentes quanto para proteger os rios sem contaminação. Júlia Chaves, ativista ambiental, condutora turística e bióloga, solicitou dois testes para a prefeitura de São Domingos, a fim de saber se substâncias como o glifosato e paraquat — por enquanto, os resultados do requerimento continuam para ser divulgados. 


Na água do rio São João, um dos cursos d’água que abraçam o povoado, felizmente não há índices de resíduo poluente. Essa é uma análise feita por um grupo de estudos liderado pelo especialista em ecotoxicologia José Vicente Elias Bernardi, professor da pós-graduação em Ciências Ambientais na Universidade de Brasília (UnB). Atualmente, o mestrando Rodrigo Marques da Rocha está conduzindo pesquisas sobre a água dos córregos na Reserva Extrativista (RESEX) de Recanto das Araras de Terra Ronca.


Dados científicos sobre a região são ferramentas de empoderamento para as reivindicações dos moradores do povoado. Algumas das medidas organizadas pela comunidade é cercar áreas de nascentes, para evitar ações humanas que possam contaminar ou interferir no fluxo do hídrico, como a presença de gado, desmate e queima. Entretanto, outras medidas também são levantadas para proteger as águas do povoado desses supracitados fatores, incluindo a fiscalização da perda de vegetação nativa e a vistoria das autorizações excessivas dadas pelo Governo da Bahia para poços artesianos.


“Nas nossas águas, considerando as nascentes do sopé da Serra Geral, boa parte da contaminação é por meio de lixiviação (a água lavando e levando para dentro dos rios); ação do vento; e erro no sobrevoo [da pulverização aérea]”, esclarece a ativista Júlia Chaves. Ao longo do processo de pulverização, existem denúncias de que os profissionais ultrapassam a área de plantio e continuam com o aspersor ligado, o que contamina diretamente as nascentes da Serra.


Pela presença quase onipresente de substâncias contaminantes na vida urbana e em muitas áreas rurais, a frustração e o ‘fazer as pazes’ com essa realidade são emoções conflitantes e coexistentes. “Eu sei que eu bebo agrotóxico todo dia. Eu tenho essa consciência porque não existe outra opção. Eu bebo o que está contaminado e como contaminação também. Mas eu sei que se eu for para Goiânia, por exemplo, vou beber uma água muito pior”, desabafa a ativista ambiental.



Árvores da mata ciliar do rio da Lapa complementam a beleza da caverna Terra Ronca 1.



Nos últimos anos, os moradores do povoado e da cidade de São Domingos perceberam o aumento dos diagnósticos de câncer na região. Em uma conversa de café da manhã, com o sol de maio brilhando logo cedo, uma moradora destaca, em especial, o número de casos de câncer de útero. Quando pergunto se São Domingos tem suporte de saúde pública para lidar com a demanda, recebo uma negativa. A população vai para Posse (GO), município há 77 quilômetros de distância, para realizar o tratamento básico — possibilidade que, na verdade, é bem recente. Antes — e ainda hoje —, o paciente oncológico vai à Brasília ou Goiânia para receber tratamento. 


Daniela de Melo explica que, por mais que exista uma ligação direta entre a exposição ao agrotóxico e o aparecimento de câncer, é necessário ter análises mais profundas para chegar a essa associação com certeza. “Qualquer tipo de câncer, mas vou mencionar o câncer de útero, é uma doença causada por múltiplos fatores, incluindo o vírus HPV. Apesar de saber que tem essa associação, não dá para afirmar com certeza que esse aumento dos casos de câncer de útero esteja associado, com certeza, à exposição aos agrotóxicos da região”, inicia a especialista.


Para investigar a suspeita dos moradores de São João, Daniela explica o caminho das pedras: “A gente precisaria fazer um estudo mais amplo, observando a evolução dos casos de câncer no Brasil e fazer uma comparação, mapeando os locais com lavoura para ver se o aumento é maior nas áreas com lavouras do que onde não há tantas lavouras”. 


A questão levantada pela população é extremamente relevante, especialmente diante do intenso uso de químicos nocivos no Cerrado.  “Existe na literatura cânceres reconhecidamente associados com a exposição ocupacional aos agrotóxicos. Citarei alguns: o mieloma múltiplo, o qual é um tumor raro de células sanguíneas, em que alguns casos chega a acometer os ossos; casos de linfomas; e leucemias, os quais são tumores mais hematológicos [ligados ao sangue]”, complementa a biomédica.


A especialista menciona um estudo recente que alerta para o aumento do diagnóstico de leucemia em crianças localizadas em áreas agrícolas no Cerrado e na Amazônia. Nesses dois biomas, para cada 5 toneladas de soja por hectare, faleceu uma criança com menos de dez anos a cada 10 mil crianças. No período entre 2008 e 2019, os pesquisadores estimam que a morte de 123 crianças esteja associada à exposição do agrotóxico utilizado em lavouras de soja. Isso representa metade das mortes de crianças por leucemia linfoblástica na região, aquelas com menos de 10 anos.


Infelizmente, o artigo alerta que muitas outras doenças e mortes podem estar associadas aos tóxicos utilizados nas lavouras. 


Aplicação de agrotóxico em lavoura. Créditos: Thomas Bauer.


No grupo de pesquisa ao qual integra, a Daniela conta a respeito de um trabalho realizado no hospital Araújo Jorge, referência no tratamento de câncer em Goiânia. “Temos avaliado vários agricultores que estão sendo atendidos ou foram atendidos e desenvolveram tumores como os que relatei: melanoma, linfomas, leucemias, tumores de cabeça e pescoço…”, acrescenta. Além de trabalhar com os agrotóxicos, parte dos agricultores também consomem bebida alcoólica e fumam, aumentando a chance de desenvolvimento dos tumores, por conta do ‘efeito sinérgico’, aumentam os riscos de desenvolver esses tumores. 


Daniela reforça a importância de avaliações médicas frequentes, especialmente para pessoas que trabalham na agricultura. Infelizmente, grande parte dos agricultores atendidos no hospital não tinham o costume de fazer acompanhamento de saúde e, quando foram procurar o tratamento, já estavam muito doentes.


Porque, no Cerrado, a situação está crítica.


“O último trabalho que estamos fazendo agora é na região de Pontalina (GO). Ficamos bem assustados, porque os agricultores usam produtos proibidos em outros países, um deles é o herbicida atrazina, ilegal na Europa desde 2003. Outro é o paraquat, proibido aqui desde 2017, mas as pessoas continuam usando no Brasil. O paraquat é tão tóxico para o ser humano que pode causar morte em questão de meses, causando um colapso pulmonar grave”, alerta a professora.


Um agravante na realidade dos pequenos agricultores é o manejo dos produtos sem conhecimento prévio — especialmente, quando são feitas misturas dos agrotóxicos —, e o não uso do equipamento de proteção individual, aumentando as chances de intoxicação. Uma das preocupações da pesquisadora Daniela é a subnotificação dos relatos de intoxicação. 


Ela explica: “Muitas vezes os agricultores não sabem que estão intoxicados. Temos um questionário que passamos, perguntando se eles sentem alguns sintomas durante o uso dos produtos, como dor de cabeça, náuseas, coceira na pele, alergias, diarreia, confusão mental e convulsões. Eles respondem que sim, mas, quando perguntamos se associam ao uso dos agrotóxicos, eles dizem que não. Então, não identificam a intoxicação aguda”.


A complexidade aumenta para identificar as intoxicações crônicas decorrentes do contato com veneno. “É muito difícil associar uma doença que acontece no futuro com o uso do agrotóxico. Eu citei câncer, mas existem muitas mulheres agricultoras que perdem o bebê por abortos precoces decorrentes do agrotóxico. Existem outros casos de problemas neurológicos, doenças como Alzheimer e Parkinson; e outros distúrbios reprodutivos, como abortos de repetição”, complementa.


Em levantamento, Campanha Nacional em Defesa do Cerrado e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) denunciam os mais de 600 milhões de litros de pesticidas pulverizados no Cerrado por ano. Crédito: Agência Brasil.



Canos, poços e pivôs em terras cerratenses


Uma ruga na testa para quando a água chega.


Porque, às vezes, ela não vem.


No caso do povoado de São João, a água é captada por meio dos poços artesianos domésticos, assim, o não vir depende de alguns fatores como redução das chuvas e dos níveis de água subterrânea e superficial. O primeiro fator não é determinado diretamente pela monocultura na Serra Geral, apesar de que, ainda assim, recebe influência. O segundo, entretanto, é consequência direta dos super poços artesianos, uso intenso de pivôs de irrigação no alto da Serra e desmatamento nas áreas próximas da região.


Apenas em 12 anos, o Brasil aumentou em 225% sua área irrigada por pivôs, concentrada majoritariamente (92,5%) nos estados de Minas Gerais (29,2%), Goiás (16,3%), Bahia (15,3%), São Paulo (15,3%), Rio Grande do Sul (10,2%) e Mato Grosso (8,6%).


Os dados do Mapeamento Atualizado da Agricultura Irrigada por Pivôs Centrais no Brasil, produzido pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), registram mais 30 mil pontos-pivôs utilizados em 2022, ocupando 1,92 milhão de hectares. 70,4% da área total de pivôs centrais estão no Cerrado, correspondente a 1,35 milhão de hectares.



Irrigação por pivô central em Brasília. Tony Winston/Agência Brasília.



Essa concentração no Cerrado é consequência do expandir da agricultura em áreas de maior déficit hídrico; da estrutura fundiária de grandes e médias propriedades; da adequação desse sistema para grandes áreas relativamente planas; e para os tipos de solos predominantes, explica o documento.


Os lençóis freáticos do Cerrado são uma das principais características que denominam o bioma como o berço das águas do país, por ter grandes reservatórios subterrâneos, incluindo parte do aquífero Guarani, o maior manancial de água doce subterrânea transfronteiriço do mundo.


Para que haja água na superfície — nossos rios, riachos, lagos e córregos —, é preciso garantir a saúde das águas subterrâneas do bioma. Quando o nível do lençol freático abaixa significativamente, o trabalho hídrico para recarregar dificulta, podendo comprometer a disponibilidade do recurso. Uma das consequências é a falta d’água temporária — nos mais drásticos casos, a falta é permanente —, como já aconteceu no povoado de São João, quando a população ficou quase uma semana sem água.


Segundo a Agência Nacional de Águas, estima-se que a  disponibilidade de água subterrânea do Brasil seja em torno de 13.205 m³/s. Até meados de junho de 2024, haviam 373.623 poços artesianos registrados no Sistema de Informações de Águas Subterrâneas (SIAGAS) do Serviço Geológico do Brasil (SGB/CPRM). Adensam-se principalmente nos aquíferos Açu, Bauru-Caiuá, Guarani, Serra Grande, Serra Geral, Araripe, Potiguar, São Francisco e Urucuia.


Pernambuco lidera o ranking dos estados com maior número de poços artesianos e fontes naturais, com 44.099; seguido por Ceará (39.119), Piauí (37.385), São Paulo (36.746) e Bahia (28.879), respectivamente.


Neste cenário, vale ressaltar que a denúncia dos moradores de São João volta-se para os super poços artesianos que sustentam a intensa atividade dos pivôs de irrigação próxima ao território. Para lidar com a problemática, a comunidade cobra maior fiscalização e diálogo entre a Agência Nacional de Águas, o governo de Goiás e o governo do estado da Bahia. 



IRRIGAÇÃO E USO DO SOLO NO MUNICÍPIO DE CORRENTINA, EM 2022

Mapa de irrigação em Correntina (BA), a partir da análise dos usos de solo. Fonte: MapBiomas.


Legenda:




IRRIGAÇÃO EM CORRENTINA

Destaque para os usos de irrigação em Correntina (BA). Os pontos em amarelo são os locais com irrigação por pivô. Em 2022, o estado registrou 18.678 hectares com pivôs. A série considera o período entre 1985 e 2022. Fonte: MapBiomas.



Voltando ao Mapeamento Atualizado da Agricultura Irrigada por Pivôs Centrais no Brasil, numa perspectiva local, os cinco — dos trinta — municípios com maior área equipada com pivôs por hectares (ha) estão no Cerrado. São eles: Paracatu (MG), com 79,9 mil ha; Unaí (MG), com 72,7 mil ha; Cristalina (GO), com 65,6 mil ha; São Desidério (BA), com 56,5 mil ha; e Barreiras (BA), com 48,2 mil ha. 


É uma constante: ao comparar a área com pivôs em 2019 — com base no Atlas Irrigação 2021 —, houve um aumento de 370 mil hectares (+24%). Em paralelo com 2010, a área subiu para mais de 1 milhão de hectares (+225%).


São Desidério e Barreiras são municípios de atenção para o avanço da fronteira do agronegócio, com alarmantes dados de desmatamento e de uso dos recursos hídricos do Cerrado. A distância do primeiro município para São Domingos é de pouco mais de 200 km.



Paisagem ao longo da BR próxima ao Distrito de Rosário.


O relatório anual “Conjuntura Recursos Hídricos Brasil 2023”, da ANA, indica que a irrigação é responsável por 50,5% do total de água consumido no país — por ano, são aproximadamente 32,41 trilhões de litros provenientes das águas superficiais e subterrâneas. Nos demais setores, 8,1% do recurso se destinam ao consumo animal; 9,4% à indústria; 23,9% ao abastecimento urbano; 1,6% ao abastecimento rural e à mineração; e 0,5% para termelétricas.


Pelos dados do Sistema de Informações sobre Recursos Hídricos em Goiás (SIRHGO), o estado registrou, até meados de junho, 29.176 outorgas para uso dos recursos hídricos. A grande maioria da água é captada de fontes subterrâneas (60,2%); 19,6% são retiradas das águas superficiais e 18,1% é por barramento. De acordo com o  Sistema de Informações de Águas Subterrâneas (SIAGAS) do Serviço Geológico do Brasil, o estado apresenta 6.423 poços.


A partir dos dados do SIRHGO, o mosaico é desenhado da seguinte forma: 33,4% direciona-se para uso humano — como os poços artesianos que abastecem a população de São João, em que o impacto nos lençóis freáticos é menor; 16% é para os lugares onde animais tomam água (bebedouros, lagos e reservatórios, por exemplo); a irrigação é responsável por 13,1%; 5,4% vai para reservatórios; 2,9% para indústria; e 2,78% para agricultura. 


No estado vizinho ao município de São João, o panorama do uso da água é drasticamente diferente: em 2023, 87,95% da água na Bahia foi consumida pela irrigação, correspondendo a 135 mil litros de água por segundo (m3/s). Quando o parâmetro altera-se para a retirada da água, sobe para 156,54 mil litros por segundo sob responsabilidade da irrigação — 75,6% do total retirado. No mesmo ano, o total de água foi de 207,13 m3/s retirados por sete setores (os mesmos incluídos na análise por consumo, incluindo, para além, as termelétricas).


Na categoria consumo, foram 153,57 m3/s totais utilizados em 2023, informa a Agência Nacional de Águas. Em segundo lugar, foram 7,25 mil litros por segundo direcionados para a pecuária (4,72%); 3,1% (4,83  m3/s) e 2,1% (3,9 m3/s) para o abastecimento urbano e rural, respectivamente; 1,93% (2,95 m3/s) e 0,2% (0,24 m3/s) sob responsabilidade da indústria e mineração, nessa ordem.


O Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) é a instituição responsável por conceder outorgas registradas para uso dos recursos hídricos superficiais e subterrâneos na Bahia. Estão registradas 14.319 e 7.355 outorgas para uso de águas subterrâneas e superficiais, respectivamente, no estado, pelos dados da ANA. Este dado não exclui as documentações já vencidas e ainda presente no registro atualizado da Agência.


As atividades de irrigação no estado são incentivadas pela gestão pública estadual e federal. A esperança — e justificativa — é transformar o semiárido baiano em produtivas lavouras, especialmente de frutas e, assim, gerar empregos e autonomia para as famílias e comunidades locais. Entretanto, ao analisar profundamente o contexto e os principais beneficiados pela prática, a realidade se mostra distante da expectativa e do discurso, especialmente no oeste da Bahia. A irrigação, com destaque para a irrigação por pivô, é uma ferramenta familiar ao agronegócio brasileiro, direcionada majoritariamente para as monoculturas — também commodities para exportação.


Como consequência, o conflito e busca pela água se acentua nas terras baianas, os custos para irrigação aumentam e o impacto nos corpos hídricos do Cerrado intensificam, acendendo luzes de preocupação. Os maiores impactados são a população local, cujo modo de vida depende diretamente da saúde do Cerrado – saúde hídrica, saúde do solo, biodiversidade e de seus povos. Deixa para trás — afinal, a maior parte dessa produção monocultural não alimenta os brasileiros —, as marcas interferem na segurança hídrica não só do bioma, como também de todo o Brasil.


A promessa para o futuro é o avanço desse tipo de ‘desenvolvimento’ e progresso. “Foi dada a largada para um novo projeto público de irrigação, no estado da Bahia, com potencial para gerar mais de 185 mil empregos diretos, indiretos e induzidos na região quando estiver em operação”, diz a Agência Gov, em publicação de abril deste ano. Novamente, o horizonte é reduzir as desigualdades regionais e inter-regionais, promovendo, conjuntamente, a sustentabilidade.


“Para o ministro da Integração e do Desenvolvimento Regional Waldez Góes, a chegada do Projeto de Irrigação Vale do Iuiú à região sudoeste da Bahia está alinhada a estratégia do Governo Federal de democratizar o acesso aos investimentos que combatem as desigualdades regionais e fortalece o desenvolvimento regional sustentável e possui íntima relação com a defesa da democracia”, continua a reportagem.


Muitas coisas são justificadas pelas metas de produção na região. A safra entre 2022 e 2023 de soja no oeste baiano aumentou 7,7% em comparação com a produção passada, com produção histórica de 7,47 milhões de toneladas, pelos dados da Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia (Aiba), batendo mais um recorde de produtividade no país, em uma área cada vez mais crescente, saindo de 1,78 milhão de hectares para 1,86 Mha.


 O crescimento vale também para a monocultura de algodão na região, este de 15,47% em relação ao ciclo passado, chegando a 615 mil toneladas.


Esses dados frios podem parecer distantes, irreversíveis até. Como se não houvesse alternativa. Mas Maria da Silva, professora aposentada, dominicana com orgulho e crescida nos conhecimentos tradicionais do Cerrado, aponta para o passado. Um passado que pode ancorar a alternativa crítica do futuro. Um futuro em que a ‘terra não vai estragar e o Cerrado não vai morrer’.



“Quando vejo fazer o desmate e o fogo, me sinto um bicho indefeso que não tem o que fazer. Quando o homem desmata para plantar o arroz e o feijão, para a subsistência, é uma coisa. A terra não vai estragar e o Cerrado não vai morrer. Já essa agricultura que temos ao nosso redor, que está nos prejudicando muito, traz risco de ficarmos sem água, por conta dos poços artesianos. O alimento não é para matar a fome do brasileiro, é muitas vezes para alimentar o mercado no exterior. Nós ficamos à mercê, com alimento contaminado de agrotóxico e com a água contaminada também”.
- Maria da Silva.

Neste cenário de intenso uso dos corpos hídricos do Cerrado, o pesquisador Joaquim Raposo destaca como principais consequências: a perda de biodiversidade, porque “a redução de níveis de água afeta diretamente os hábitats aquáticos, prejudicando fauna e flora locais”; os impactos negativos na segurança hídrica e alimentar local, o que vulnerabiliza populações locais; e a erosão e degradação do solo. “A supressão de vegetação nativa contribui para a erosão do solo, aumentando a sedimentação em corpos d’água e agravando a crise hídrica”, complementa a última consequência.


Com dados menos alarmantes, diferentemente dos observados no Parque Estadual Terra Ronca e na Reserva Extrativista, o grande município de São Domingos é abundante em águas superficiais. Entre 1985 e 2022, a curva do movimento da superfície de água não alarma ou dança drasticamente. Em 2022, foram 808 ha de águas superficiais, um pouco acima da média de 789 ha. O mínimo na série histórica foi 605 ha, em 2008, ao passo que a máxima foi de 1.023 ha, em 1993.


A principal ameaça para as águas do município não é a irrigação por pivô nem os super poços artesianos. É o fenômeno que assombra o Cerrado, baseia o modus operandi da cultura do sacrifício. É o segundo passo depois do fogo grileiro varrer o campo, a savana e a floresta, aprontando-as para diversas formas de uso da terra. Sejam eles legais ou ilegais.





São Domingos e Terra Ronca enfrentam poderosos titãs


Talvez o principal problema ambiental no Brasil, desde a invasão em 1500, seja o conflito fundiário e a forma com que utilizamos o solo. A terra não apenas ronca, mas ruge em fúria secular.


Este é o titã do desmatamento.



O trator arrasta consigo o corpo morto do pequizeiro, deixa para trás fantasmas



Estamos falando do desmatamento e supressão de vegetação em um bioma que ultrapassou os índices da Amazônia. O Cerrado alcançou o infeliz registro de 61% do desmatamento nacional, em 2023. Ainda pelos dados do Relatório Anual de Desmatamento no Brasil do MapBiomas, foram mais de  1 milhão de hectares deflorestado em terras cerratenses no ano de 2023, um aumento de 68% em relação a 2022. Quase todo o desmatamento do país (97%) teve a expansão agropecuária como vetor do fenômeno. 


A região do Cerrado mais afetada é o chamado Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), principalmente no Maranhão, Tocantins e Bahia.  Somando os três estados, foi perdida uma área equivalente a 2.334,5 hectares de vegetação nativa por dia, sendo os estados mais desmatados por dia.


Florestas e savanas derrubadas no estado da Serra Geral interferem diretamente no Cerrado de São Domingos e de toda a região do Terra Ronca. As consequências são sentidas nos caminhos das águas — afinal, a sinergia e conexão das águas supera as linhas arbitrárias das unidades da federação —, a segurança do solo, o comportamento dos animais, a saúde humana, o futuro na ponta dos dedos.


Por mais que a expansão da monocultura em terras baianas seja uma preocupação da população do povoado São João, o desmatamento no próprio município de São Domingos traz angústia.


Ao analisarmos os dados do MapBiomas Alerta, a área desmatada em São Domingos (GO) quadruplicou de 2022 para 2023. Entre 2019 e 2023, foram 2.857,3 hectares de vegetação suprimida: o último ano foi responsável por 1.258,64 ha, o equivalente a 44% do total dos quatro anos. A média diária é de 1,6 hectares de vegetação reduzida por dia e a principal causa da supressão é a agropecuária local.


Estamos falando de mata derrubada da vegetação remanescente do Cerrado goiano, incentivada e apoiada pela ação pública, representada pela Secretaria do Meio Ambiente de Goiás. 


Primeira etapa do desmate de 499 hectares em São Domingos, em área colada à cidade e ao rio homônimo.  Imagem por Júlia Chaves, ativista ambiental, bióloga e condutora turística.



O mês de junho começou com um choque para os dominicanos: assistiam à primeira etapa de desmate em área próxima ao núcleo urbano de São Domingos, movendo esforços públicos e privados para trazer lavouras de soja ao território. O objetivo inicial é suprimir 499 hectares e, então, reduzir mais 636 ha, completando a área de 1.135 hectares licenciada para monocultura da Fazenda São Domingos.


A imagem parece um jogo de ‘encontre os sete erros’: apesar de estar em conformidade legal, a área desmatada — e em breve lavoura — é muito próxima do centro urbano de São Domingos, o que aumenta as chances de poluição e contaminação atingir os moradores. Na imagem aérea, beira o rio homônimo à cidade, fato que também move preocupações dos moradores.


Para além de números e dados frios, quando um trator passa, são vidas retiradas também. Dentre elas, a de um pequizeiro, carregado e sacrificado por não condizer com a lógica de desenvolvimento e agricultura preferida das instituições públicas do Brasil. Pouco importa se o pequizeiro é protegido por lei, deixou para trás uma história facilmente apagada.


Quando a vegetação de um território de quase 500 hectares some em poucos dias, o coração humano aperta. Quem passava por perto todo dia, já acostumado com a vista das árvores tortas do Cerrado fazendo companhia, não mais sentirá o aconchego dos braços do bioma. Em breve, a monocultura de soja ou milho ou algodão entrará na visão cotidiana.


A voz sábia de Maria da Silva ecoa aos ouvidos. A voz de quem cresceu no afago do velho Cerrado dominicano. Começa com a lembrança do jatobá, o pão de cada dia quando criança. 


“Nasci em família produtora rural, meu pai foi produtor durante toda a vida. Nos ensinou a conservar o que temos, a natureza. Vivíamos no campo cerrado, cresci comendo jatobá, o baru quebramos e fazíamos paçoca. Comia com rapadura, produzia farinha e plantava mandioca. Vivemos dos frutos da Terra, o que a gente comprava aqui era o querosene e o sal. O resto a gente produzia, desde o óleo de coco ao azeite de mamona, para fazer lamparina quando não tinha o querosene. Vivendo a vida com conhecimentos tradicionais e do Cerrado”, puxa os fios da memória.



Espelhando uma prática comum em todo o Cerrado, o desmatamento desta grande área está em conformidade legal, com o Licenciamento Ambiental autorizando a supressão da vegetação nativa.

Créditos: Júlia Chaves.






Assim como as águas e as raízes se conversam, a supressão da mata nativa do Cerrado para se transformar em monocultura impacta na disponibilidade e qualidade hídrica regional, biodiversidade, nos conflitos pela terra e, a longo prazo, nos efeitos climáticos — com menos árvores, a temperatura aumenta e o fluxo pluviométrico por ser afetado.


“Eu fico triste quando passo na BR-020 e vejo um Cerrado que, antes, quando ia para Brasília (DF) e Posse (GO), era vivo e conservado. Hoje é só o agro”, relembra Maria da Silva. E continua: “Quando vejo o desmatamento, isso dói. Para chegar a monocultura, passam o trator, tirando tudo que há pela frente. São milhares de anos para o Cerrado nativo chegar aonde está, em um ambiente saudável. Quando o homem chega com o trator, em algumas horas ele destrói muitos hectares da vegetação nativa e deixa a terra nua, exposta ao sol e com o solo desprotegido. Algumas áreas estão virando desertos e isso me choca muito”.











Naquela sala — que por muitos anos foi a sala de aula dos estudantes do Ensino Fundamental I do povoado de São João —, as rodas de conversa movidas em dois dias expressaram muitas paixões, sonhos, angústias, esperanças, sementes, contradições e caminhos. Um dos exemplos é a complexa e conturbada relação entre o nordeste goiano e o oeste baiano. Se, por um lado, atravessar a fronteira possa significar o encontro com membros da família que encontraram trabalho e vida digna em terras baianas, o barulho do trator, o medo da seca, a apreensão do envenenamento e a percepção do recuo das águas intensificam a distância imaterial. 


Como podemos observar nos mapas, a fronteira agrícola em Correntina cresce, austera, sobre a Serra Geral, trazendo consigo seus impactos sociais e ambientais discutidos até este capítulo. Todos esses desafios começam pela terra — o primeiro conflito trazido pela invasão deste chão brasileiro. Vêm pela predação, o engolir e controlar da Natureza e seus povos.


Lá no sopé da Serra Geral, o povoado de São João também se movimenta. São pesos e medidas diferentes — afinal, o agronegócio no Brasil carrega consigo a moralidade da economia e a política do desenvolvimento a qualquer custo. Mas a agência popular move como o vento do povoado faz dançar as folhas do grande pé de jatobá.


Naquela antiga sala aula, a Carta de Direitos Climáticos de Terra Ronca demanda responsabilização, fiscalização e pagamento.


Na esfera pública, é necessário responsabilizar o estado de Goiás pelo licenciamento dos super poços artesianos das fazendas acima da Serra. Dessa forma, promover sustentáveis e comprometidos critérios e parâmetros no processo legal de autorização para o uso dos recursos naturais do Cerrado. Em consonância, ampliar a fiscalização das construções em locais ecologicamente sensíveis — em especial, naqueles com água, a fim de preservar áreas como as matas ciliares e veredas. Ligado diretamente ao tráfico de madeira, a Carta demanda o fim ao uso da madeira proveniente de desmatamento na região.


A segunda etapa de responsabilização exige a ação pública goiana e baiana como força de pressão legal, mas é direcionada ao setor privado: o agronegócio deve pagar pela degradação ambiental que causa. Começando pelas águas e a contaminação — o que implica, também, no uso de ferramentas menos agressivas como o agrotóxico —, grandes empresas e fazendas devem pagar ao município pelo uso e pelo consequente impacto da monocultura. 


Em outro espaço e tempo, Joaquim Raposo, pesquisador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), complementa medidas essenciais para alterar — e frear — o cenário de predação e de interferência na qualidade de vida e ambiental  experienciada em São Domingos e em todo o Cerrado. 


“É necessária a implementação de políticas públicas que protejam os recursos hídricos, controlem o desmatamento e fortaleçam a gestão de áreas protegidas”, inicia. O aumento da fiscalização das outorgas para uso d’água e para supressão de áreas com vegetação nativa são alguns dos exemplos citados pelo especialista. E continua, sendo preciso “promover práticas agrícolas sustentáveis que preservem a água e o solo e sensibilizar a população sobre a importância da conservação dos recursos naturais”.


Vale ressaltar que o povoado de São João insere-se na Reserva Extrativista (RESEX) de Recanto das Araras de Terra Ronca e faz parte da vizinhança do Parque Estadual Terra Ronca. Nesse cenário, por serem unidades de conservação, a fiscalização para outorgas e licenciamentos de supressão da vegetação nas localidades próximas ao território deve ser atenta e comprometida com o interesse de proteção ambiental da população.



MAPA DO USO DO SOLO EM SÃO DOMINGOS, MUNICÍPIO DE GOIÁS, E CORRETINA (BA)



Ao olharmos o mapa no norte e nordeste de Goiás, é possível perceber a conversa ecológica entre a região do Terra Ronca e o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, duas importantes áreas de proteção da vegetação nativa do Cerrado e que também experienciam o estrangulamento da monocultura. Uma das preocupações apontadas por um dos presentes no encontro para construção da Carta dos Direitos Climáticos do Terra Ronca é a especulação fundiária na região: dado aos preços aos arredores do território, existe o perigo da venda de terras para a exploração, ao invés de manter as áreas para conservação.


O receio tece mais e mais sonhos: o Cerrado precisa ser mais valorado. Para alcançar o sonho, a prática chama a construção de sustentabilidade para empregos na região. Assim, a população fica. Fica, protege e consegue se sustentar com esses serviços ambientais prestados, no esforço de manter o Cerrado de pé. Desse modo — e aqui vem mais um sonho, sem sinônimo —, a urgência em criar mais unidades de conservação para que, juntas, protejam o nordeste goiano, com sua biodiversidade ampla, desde o alto da Chapada dos Veadeiros até as áreas baixas de Terra Ronca.


Talvez sonhos sejam a melhor forma de fechar o nó deste capítulo — para logo abrir mais outro e continuar o costurar de uma história. Sonhos de amor, proteção e ação afetuosa pelo Cerrado. De forma cíclica como o dormir de uma grande cobra roda todo o globo, cujo rabo descansa no Morro do Moleque e a cabeça repousa no Terra Ronca.


O encontro para o tecer da Carta de Direitos Climáticos do Terra Ronca começou com uma canção. A voz de Júlia Chaves evocou a força tradicional do umbuzeiro e a memória de Luiz Gonzaga. É o Umbuzeiro da Saudade. 


Aqui, esta forte música é uma tentativa de rugir, feito a Terra quando troveja, contra o secular desmatamento, cuja política de destruição colonial que o criou ainda está tão estruturada em nossas realidades.


Umbuzeiro veio

Veio amigo quem diria

Que tuas folhas caídas

Tuas galhas ressequidas

Iam me servir um dia

Foi naquela manhãzinha

Quando o sol nos acordou

Que a nossa felicidade

Machucou tanta saudade

Que me endoideceu de amor

Indiscreto passarinho

Solitário cantador

Descobriu nosso segredo

Acabou com nosso enredo

Bateu asas e voou

Hoje vivo pelo mundo

Tal o qual o vem-vem

Sobiando o dia inteiro

Quando vejo um umbuzeiro

Me lembro de ti meu bem




São Domingos e Terra Ronca enfrentam poderosos titãs


Pesadelo marcado na memória de gerações, o fogo é um inimigo comum. Pela chave da educação ambiental, este titã pode se converter em aliado.



Quando o fogo chega nas veredas de Terra Ronca


Existe algo poético na expressão “cicatrizes de fogo”. Seu significado abraça as marcas físicas que o fogo deixa para trás, como os troncos escurecidos e carbonizados, vistos tanto pelos olhos humanos, frente a frente, quanto por lentes de satélites orbitando um planeta azul. Caminha além de si, adiante, encontrando outras semânticas. As cicatrizes de fogo carregam consigo marcas coloridas pela cultura e os afetos, construindo algo maior, um mural ou vitral, com cor nos espaços outrora quebrados.


Porque o fogo, assim como o vidro e a porcelana, caminha por dois rumos, é uma faca de dois gumes.


Quando o sol da tarde insiste em aquecer a antiga sala de aula, o ventilador lutando para cantar o calor longe dali, a roda da conversa reúne memórias de dor. Memórias forjadas pelo fogo. O que é compreensível.


Quando o fogo vem, tudo muda muito rápido. É compreensível entender o fogo — e suas cicatrizes — como símbolo inibidor do futuro. Se queima, se carboniza, os futuros possíveis reduzem, deixando para trás fumaça e cinzas.


Sentada em frente ao posto de saúde do povoado São João, escuto as histórias de afeto e Cerrado contadas por Rivânia Vieira de Sousa. Quando olhamos para o passado — a memória do ‘cheiro de preservação’ do Cerrado, as caminhadas em direção à escola, um pouco distante da fazenda onde morava — e chegamos ao presente, o fogo é uma presença cortante. 


“Parece que as pessoas não pensam no futuro, só no agora. Então colocam fogo e deixam o correr, matando passarinho e o que mais tiver pela frente. Não gosto de ver o Cerrado queimar, não sou a favor do fogo”, desabafa a técnica de enfermagem, funcionária do posto do povoado há dois anos. Seu relato tem o peso de quem também é brigadista, assim como seus dois irmãos.



Os troncos das árvores nos campos marcam cicatrizes de fogo.



São Domingos é conhecido por inúmeras belezas naturais, todas tocadas, de alguma forma, pela água. As veredas do município são o tesouro do povoado de São João, aquelas que protegem com unhas e dentes. Uma das principais ameaças são a presença do gado próximo às veredas — as águas, como bebedouros para os animais, são a principal razão para os proprietários soltarem o gado — e o fogo, um dos agentes do desmatamento, facilitador na criação pecuária nessas áreas.


Fogo que escurece a atmosfera do povoado, potencializado pelo vento de agosto e os ventos gerais. Quando a seca vem, junto com a fumaça aparecem as doenças respiratórias, relatam os moradores.


“O que temos conservado aqui é fruto da população local. Sabemos que as veredas são as mães águas. A gente vê, hoje, que a maioria dos buritizais morrem queimados, consequência do fogo ateado por uma pessoa que nem é local daqui. Isso traz tristeza para nós, que trabalhamos tanto para conservar”. Esse fogo ameaçador e prejudicial também é denunciado pela professora aposentada Maria da Silva.


Assim como as matas de galeria e áreas de nascente, as veredas não são um tipo de vegetação familiar ao fogo e, por isso, têm menor resistência adaptativa a este tipo de distúrbio natural. Este distúrbio é familiar para os campos savânicos e campestres do Cerrado, por terem se desenvolvido ao longo de milhares de anos com o fogo causado pelos raios. Para muitas espécies nativas, o fogo é essencial, esse fogo natural que acontece no final da estação seca e na temporada de chuvas, entre outubro e maio.


Locais com espécies como buritis são vulneráveis à presença do fogo, por não serem adaptados a esse tipo de distúrbio.


Com múltiplas faces, a intenção do fogo depende das mãos que o colocam. Pode ser uma ferramenta criminosa para invadir terras protegidas, um passo anterior ao desmatamento; ser o fogo causado por uma mente relapsa e coração irresponsável de quem lançou e deixou correr. Também é capaz de ser ferramenta ancestral para o cuidado do bioma cerratense, protegendo a biodiversidade e fazendo brotar de novo em espaços sufocados por folhas mortas e material combustível.


Um exemplo positivo de atenção à saúde das florestas do Cerrado é a prática do Manejo Integrado do Fogo (MIF), método preventivo de incêndios florestais, que têm origem humana. O MIF utiliza o fogo como ferramenta estratégica para criação de aceiros e limpar material combustível — como folhas e capim seco —, a fim de reduzir o impacto de incêndios florestais e proteger áreas do Cerrado que não devem queimar de forma alguma.


Prática que integra ações da sociedade, pesquisas e políticas públicas, o Manejo prevê dois tipos de queimas: a prescrita e a controlada. Realizada entre outubro e junho, a queima prescrita acontece em áreas protegidas e vulneráveis aos incêndios (que são, de fato, o fogo descontrolado, com proporções catastróficas e difícil de conter). Já a queima controlada é realizada em áreas produtivas como pasto e lavouras. 


Em São Domingos, o MIF ainda não é uma atividade consolidada. Como relatado pelos moradores, algumas queimadas iniciais e experimentais acontecem na região, a fim de familiarizar a população e a Brigada Comunitária de São Domingos com o método.




Uma das demandas do povoado de São João é o apoio estadual e municipal para a Brigada Comunitária de São Domingos, por meio de um fundo capaz de manter os recursos materiais (como equipamentos) e sustento humano básico para os brigadistas nos momentos de combate (especialmente a alimentação). Como o trabalho é voluntário, muito dos brigadistas deixam de trabalhar com o turismo — perdendo, assim, uma diária — para combater o fogo.


São Domingos não tem uma brigada municipal, dessa forma, os responsáveis pelo combate de incêndios na região são os voluntários da Brigada Comunitária. Dessa forma, algo reforçado nas reuniões de construção da Carta de Direitos Climáticos de Terra Ronca foi a necessidade de apoio financeiro para que o brigadista comunitário consiga combater, sem ter sua fonte de renda prejudicada por escolher realizar um trabalho de interesse público, que é a proteção ambiental. 


Em todo o município, nos últimos 38 anos (1985-2023), foram 355.635 hectares tocados pelo fogo. A maior parte dessas áreas queimaram uma única vez (73.086 hectares), 37.393 ha queimaram duas vezes, 20.322 hectares encontraram o fogo três vezes e 11.023  ha, quatro — os dados demonstram que 2023 foi um ano com significativa reincidência dos focos em determinadas áreas.  O ano com maior incidência de queima foi 2021, em que 27.510 ha queimaram; ao passo que o ano com menos focos foi 2020, com 1.863 hectares afetados. Por ano, a média é de 9.119 ha afetados pelos focos de calor.


Quando analisamos quais locais do Cerrado dominicano são as mais afetadas pelo fogo, a esmagadora maioria se concentra nos espaços ocupados pela agropecuária — especialmente nas pastagens e áreas em que a agricultura e a pastagem coincidem, identificadas como mosaicos de usos, e nas culturas de soja e lavouras temporárias. Nesses espaços, o fogo afetou 88.611 hectares (57% do total, na série histórica).


As regiões com formação natural, florestal e não florestal, teve 66.661 hectares impactados pelo fogo (43%). As formações savânicas e campestres foram as mais impactadas: juntas, somam quase 60 mil hectares impactados, contrastando com 2.258 hectares das áreas florestais — como matas de galeria e matas ciliares, por exemplo.




O comportamento do fogo no Parque Estadual Terra Ronca tem algumas particularidades. Por ser uma unidade de conservação integral dividida por São Domingos e Guarani de Goiás, com aproximadamente 57 mil hectares, a responsabilidade do fogo não manejado (e ilegal) nesse território é dos dois municípios. Acumulado no período entre 1985 e 2023, foram 43.545 hectares afetados pelo fogo, com maior área impactada em 2021 — 7.211 hectares. A média de fogo por ano é de 1.117 ha. As formações savânicas e campestres também são as mais afetadas no parque.



Ao longo das conversas, o fogo pareceu ser um caminho aberto para a união. Veste-se, talvez, de mais uma cor, transformando as cicatrizes. Essa cor tem como pigmento a educação ambiental para todo o município e, em especial, no povoado de São João. Para esses projetos educacionais, o fogo é um dos assuntos buscados pelos moradores, por seu impacto cotidiano na vida da comunidade.


Em um desenho no mural, o brigadista protege as águas de São João do fogo. O autor da arte inspirou-se nas conversas para construção da Carta — para ser exata, a caneta se moveu pela cartolina durante um jogo, um jogo construído a partir de sementes, perguntas e soluções brotadas nas palavras dos participantes. 


Nessa mesma cartolina, sementes germinam.




São Domingos e Terra Ronca enfrentam poderosos titãs


O vento traz notícias como quem se preocupa demais. E com razão. Lá de cima, a Serra costura uma tapeçaria que narra os efeitos climáticos já sentidos por gente, vereda, rio e caverna.


Seca afoba e chuva estressa, a comida treme


Quando Maria da Silva fala, movendo histórias, pessoas, futuros e caminhos, a fé na educação socioambiental se fortalece, estruturada em exemplos vivos e ativos.



Na sombra de um grande jatobazeiro, Maria da Silva me leva ao seu passado através dos frutos do Cerrado. “Cajuzinho do Cerrado, puçá, jaboticaba do Cerrado, coco catulé e o coquinho licuri para paçoca com rapadura e farinha, o que matava a fome da gente como criança, a fome de nove irmãos. Pegando água do córrego, na bica, vivemos essa vida”, conta a capitã dessa viagem no espaço-tempo.


Diversidade de alimentos é um dos pilares do conceito de segurança alimentar, conceito tão  importante que inclui todas as dimensões atreladas ao que é a fome.  Isso envolve a disponibilidade e o acesso permanente aos alimentos, alimentos que são nutritivos e tiveram um processo produtivo saudável e sustentável. A insegurança alimentar é uma das principais consequências da degradação, destruição e predação da Natureza — e seus impactos na segurança hídrica, na poluição das cidades e zonas rurais, na saúde do solo e nas crises sanitárias.


Quando Maria da Silva denuncia os agrotóxicos nos alimentos e a contaminação da água, ela está falando de insegurança alimentar.



São Domingos, segurança alimentar e a seca


Já é uma realidade. A região do Terra Ronca apresenta altos riscos de ter sua segurança alimentar afetada pela seca, de acordo com a plataforma Adapta Brasil. Alguns dos principais fatores que influenciam esse dado são: as áreas agropecuárias com baixo potencial agrícola; a baixa produção de alimentos básicos nas áreas produtivas (arroz, feijão, mandioca, trigo e a produção de leite), o que compromete o abastecimento interno da população; e o nível de acessibilidade na infraestrutura urbana e logística de transportes no município de São Domingos. 


O risco é composto por três atributos:


  1. vulnerabilidade da região para lidar com o problema da insegurança alimentar decorrente da seca;

  2. o nível de exposição do território ao fenômeno;

  3. a ameaça climática.



Para o primeiro componente, São Domingos apresenta média vulnerabilidade. Esse fator é construído pelo nível de sensibilidade do município — baixa, o que é positivo para o cenário — e pela capacidade adaptativa — também ter baixa, algo negativo, porque se mostra sem estrutura suficiente para responder às possíveis ameaças climáticas causadas pela seca. O  que compromete a adaptabilidade dominicana é, principalmente, a falta de planejamento e gestão da segurança alimentar e nutricional comprometida com a resiliência municipal — essa realidade não é restrita apenas à São Domingos.


Adaptar um local para enfrentar as mudanças climáticas e seus eventos extremos é uma demanda complexa e exige muita vontade política  e diálogo com as demandas da população. Assim, é possível construir e aplicar políticas públicas e programas que auxiliem na contenção dos impactos climáticos da seca relacionados com a segurança alimentar. Para isso, é necessário construir uma estrutura de instrumentos que consiga planejar e fazer a gestão de medidas para garantir a segurança alimentar, assim como investimento na adaptação de todo o município.


É baixo o nível de exposição de São Domingos para o impacto da seca na segurança alimentar. O que segura a classificação deste índice é a abundância de recursos disponíveis para a agropecuária local, como água; a muito baixa densidade populacional e a baixa densidade de estabelecimentos agropecuários.


O terceiro componente do risco é a ameaça climática regional à seca, construída com base nas variações do clima nos últimos vinte anos. Apesar de ter o alarme “muito alto” para o número de dias secos consecutivos — o que é preocupante —, São Domingos apresenta um padrão saudável de precipitação e evapotranspiração. Assim, seu risco de ameaça climática é médio.


Pressionar a vontade política local é urgente — algo reforçado no debate para a construção da Carta dos Direitos Climáticos de Terra Ronca. É preciso pensar no futuro que já é agora. Se mantém alto o risco da interferência da seca na segurança alimentar de São Domingos, tanto para 2030 quanto para 2050, nos cenários pessimista e otimista.


Pesquisas questionando o futuro do Cerrado também indicam uma conjuntura preocupante.



Principais eixos e parte dos sonhos para o Terra Ronca: mobilização comunitária, conservação da fauna e flora do Cerrado, combate ao incêndio florestal, direito à água, turismo de base comunitária, educação ambiental e sociobioeconomia a partir de frutos nativos. Créditos: The Climate Reality Project.



O drástico, o dramático e o tão perto: eventos associados às chuvas


Um decreto simples declara emergência ambiental por conta de incêndios florestais no nordeste de Goiás em agosto de 2022 é uma porta aberta para discutir adaptação dos territórios para as consequências das mudanças do clima. Meses antes, a mesma região do estado estava em documentos de alertas para desastres envolvendo as chuvas intensas no final de 2021 e começo de 2022. Faça chuva ou faça sol, nosso Cerrado já está vulnerável.


“Uma preocupação que eu tenho de impactos climáticos é a erosão envolvendo a Serra [Geral]. Alguns anos atrás, tivemos uma erosão que caberia esta casa dentro nela — essa erosão foi parte do que levou areia para o rio São Domingos”, relembra a ativista, as mãos preocupadas indicando para além da sala comunitária, para todo o povoado, para todo São Domingos. Evocando e chamando todo o Cerrado.


Para São Domingos, um município tão próximo da alta Serra Geral, o dado mais alarmante no Adapta Brasil envolve os riscos para desastres hidrogeológicos — deslizamentos de terra, inundações, enxurradas e alagamentos. O município apresenta como muito alta sua vulnerabilidade a esses eventos, com agravante para a baixíssima capacidade adaptativa e alta sensibilidade para inundações, enxurradas e alagamentos.


Alguns fatores que influenciam essa vulnerabilidade são: a reduzida estrutura de ações adaptativas para lidar com os riscos; a falta de um sistema de alerta antecipado e de um plano de contingência diante dos desastres; a inexistência de manejo de águas pluviais, estrutura básica para lidar com o escoamento das águas; a inacessibilidade às cidades; e a reduzida capacidade municipal discutir, de modo incisivo e participativo, a pauta de transportes.


De modo geral — reconhecendo o altíssimo nível de vulnerabilidade; a média exposição aos fenômenos, considerando especialmente o baixíssimo número de moradias em risco; e o baixo índice para ameaças —, o município sintetiza risco médio para enxurradas, inundações e alagamentos. Um dos fatores que é importante ressaltar é a dificuldade de acesso aos povoados, especificamente ao pensarmos em São João e nas moradias próximas às cavernas do Parque Estadual. Em um cenário fictício de chuvas torrenciais e alagamentos, a região é sensível para ser alcançada, por conta das estradas.


O segundo destaque desta sessão de dados é a vulnerabilidade para enfrentamento e adaptação aos deslizamentos de terra no município. Apesar do médio risco geral ao evento desastroso — com média exposição e baixa ameaça —, a vulnerabilidade local também é muito alta. Nesse indicador, são consideradas a capacidade adaptativa — baixa — e a sensibilidade do território — alta.


O componente da adaptação compreende e analisa três aspectos: a capacidade econômica municipal — avaliada como baixa -; estrutura para gestão do risco de desastre de desmoronamento — baixo -; e a capacidade de adaptação municipal a partir de instrumentos de gestão urbana, governança, cidadania e políticas setoriais — muito baixa.


A alta sensibilidade de São Domingos ao deslizamento deve-se principalmente a altíssima deficiência em infraestrutura do município para responder e lidar com esse tipo de risco. Um outro indicador constitutivo da análise é a condição socioeconômica e demográfica da população — avaliada como média. Vale destacar que um dos componentes para a construção desse aparato de dados a importância da educação ambiental do território — uma das reivindicações e sonhos apresentados — quase como profecia, oração ao futuro ou canto de coragem — nas reuniões para a Carta de Direitos Climáticos de Terra Ronca.


Nesses cenários e em muitos outros — múltiplos, sem necessariamente precisar ser associado ao desastre ou ao desespero —, a educação ambiental é uma essencial ferramenta, caminho, possibilidade, balão para construir, adaptar e fortalecer novas realidades.


Escutar Rivânia é escutar as histórias do vento, do Cerrado e os perfumes que habitam em uma memória querida.



Porque a seca vai além de si


Quando Rivânia fala da seca de Terra Ronca, suas preocupações encontram o agravo da crise climática.


Apesar de estar na época das chuvas, em novembro do ano passado, São Domingos entrou na marca de seca severa, chegando a seca extrema em dezembro e voltando para severa em janeiro. Desde então, mês a mês, seguiu declinando: registrou seca moderada em fevereiro, ficou pelos próximos dois meses na classificação de seca fraca e voltou à moderada em maio. Esses são dados do Índice Integrado de Secas (IIS6) do Alerta-Secas, plataforma interativa promovida pelo Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), divisão de pesquisa no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.


Essas análises da plataforma conversam com a percepção da ativista Júlia Chaves. Ao navegar pelas águas de 2023, observou que as chuvas vieram atrasadas no último ano e, quando chegaram, vieram escassas. “E se as chuvas vierem fortes demais em algum momento? Não há conhecimento sobre isso, não se sabe se essas chuvas podem desabar uma caverna ou quais consequências as chuvas torrenciais podem trazer para região”, carrega questionamentos para o futuro — um futuro imediato.


Grande jatobazeiro, sombra e memória em frente ao posto de saúde do povoado. Ao fundo da imagem, é possível ver a Serra Geral.



O Cerrado já está mais seco e a expectativa é de calor severo e seca até o meio do século, caso o desmatamento no bioma continue. É o que aponta a recente pesquisa “Desmatamento no Cerrado ameaçam o clima regional e disponibilidade de água para agricultura e ecossistemas” (traduzido do inglês), produzida por pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB), em parceria com instituições e universidades como Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), Woodwell Climate Research Center, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA).


Para o futuro, os resultados indicam o aumento de 0,7 °C de temperatura no pior cenário e 0,3 °C no cenário intermediário da pesquisa. Metodologicamente, a estimativa diz respeito apenas ao desmatamento no Cerrado, região e não inclui o aquecimento global esperado de mais de 1 °C durante o período.


O presente já está mais quente e seco. A conversão da vegetação nativa do Cerrado para pastagens e agricultura já tornou o clima do bioma  quase 1 °C mais quente e 10% mais seco, indica a pesquisa, que analisou dados climáticos de 2006 a 2019. Garantir a proteção do Cerrado e buscar pelo desmatamento zero são duas ações urgentes para a segurança hídrica do país e para a estabilidade climática e hidrológica local, regional e nacional.  


Quando a vegetação nativa é alterada para outras formas de uso do solo, em especial pecuária e agricultura, a evapotranspiração local é reduzida. Assim, a temperatura superficial aumenta e, como consequência maior, as chuvas reduzem. Por isso a preocupação dos moradores do povoado de São João: sem árvores, sem água. Sem Cerrado, sem vida.


A pesquisa demonstra que a alteração do uso do solo florestal — nas áreas de mata de galerias e ciliares — para pastagens e produção agrícola aumenta 3,5 °C na média da temperatura superficial, ao passo que a média anual de evaporação e transpiração é reduzida em 44% e 39%, respectivamente. Nas áreas savânicas, essa conversão  aumenta a média da temperatura superficial em 1,9 °C e reduz a transpiração em 21% e a evaporação anual em 27%. 


Na primeira edição do ‘Faça chuva ou faça sol, meu Cerrado já está vulnerável’, a qual mapeou as principais vulnerabilidades climáticas do Distrito Federal, conversamos com Ariane Rodrigues, primeira autora da pesquisa acima mencionada. Ao longo da entrevista, Ariane — cientista ambiental e pesquisadora do IPAM — destacou os fatores locais como principais no aumento das vulnerabilidades climáticas de cada território, especialmente quando analisam as alterações de temperatura.


Trazendo para esta reportagem, todos os fatores locais discutidos até este capítulo — usos para as águas da região, impacto da irrigação por pivô, expansão contínua e predatória da fronteira do agronegócio, desmatamento e consciência ambiental acerca do fogo — impactam diretamente nas vulnerabilidades ambientais e climáticas no presente da região do Terra Ronca. São, também, fundamentais para entender como o cenário pode se agravar com o passar do tempo e como políticas públicas e ações locais podem ser estruturadas para mitigar e adaptar o município e as unidades de conservação para este cenário.


Topo da Serra Geral, em São Domingos (GO). Imagem por Henrique Costa, em 2014.



Histórica, a seca no Cerrado já é a pior experienciada em pelo menos sete séculos. Em estudo recente, publicado pela Nature Communications, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) analisaram características químicas dos estalagmites do Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, em Minas Gerais, e perceberam que as mudanças climáticas —  especificamente, o aumento da temperatura no centro do país — alteraram o ciclo hidrológico na região.


O estudo mostra que a temperatura no território central aumentou 1 °C acima da média global de 1,5 °C.  Como efeito, parte importante da água da chuva evapora antes mesmo de se infiltrar o solo, por conta da quentura no solo. O impacto desse fenômeno é sentido no processo de evapotranspiração e no padrão de chuvas — concentradas em momentos pontuais —  e a redução da recarga dos aquíferos.


A partir dos resultados, alerta para o provável agravamento desta seca que já está em curso, especialmente ao considerar a conexão entre o fenômeno e a emissão dos gases de efeito estufa. Vale ressaltar que o Cerrado é conhecido como ‘a caixa d’água do Brasil’, por ser lar de importantes nascentes para oito das doze bacias hidrográficas no país. Assim, o impacto na recarga dos lençóis freáticos do bioma interfere na segurança hídrica nacional.


O projeto revisou dados de temperatura, vazão, precipitação regional e balanço hidrológico da Estação Meteorológica de Januária. Em adição, relacionou-os com as variações da composição química de estalagmites de uma caverna no Parque Nacional Cavernas do Peruaçu. O método possibilitou analisar a seca causada pelo aumento da temperatura global através dos séculos, fenômeno este intensificado pela atividade humana, por meio das emissões de gases do efeito estufa.


Anoitecer no povoado de São João.



No decorrer das reuniões para construção da Carta de Direitos Climáticos de Terra Ronca, um dos temores é o assoreamento de nascentes de rios — como o São Domingos — entre o Parque Estadual Terra Ronca e a Reserva Extrativista de Recanto das Araras de Terra Ronca. As causas do assoreamento são as erosões e deslizamentos na Serra Geral, ligados diretamente à falta de árvores nas bordas da altitude, consequência da expansão da monocultura. 


O último grande evento geológico aconteceu onze anos atrás, quando toneladas de lama, terra e rochas deslizaram da Serra, atingindo a nascente do rio São Vicente. Os moradores do povoado relembram como a água ficou turva por semanas — destacam, também, que a principal causa da enorme erosão foi um erro na construção da curva de nível no topo da Serra. Conforme registra o blog Dinomar Miranda, a “água tirada da lavoura no platô da Serra Geral era jogada na depressão de Goiás e na nascente do rio São Vicente”.



Evento geológico em 2013. O senhor Alziro, quem conversou com o blog Dinomar Miranda e forneceu as imagens, descobriu a erosão ao subir o curso do rio São Vicente. 



A saúde da biodiversidade e de todas as formas de vida em Terra Ronca levanta ainda mais inquietações. Como proteger os peixes nas cavernas e nas áreas em que a água está esquentando? Como cuidar das nascentes e árvores do território?


Mais memórias de chuva e desmatamento atravessam as reuniões: “Antigamente, chovia bastante. Em São Domingos, o céu fechava e chovia a região inteira. Hoje é diferente, justamente pelo desmatamento. Cada dia que passa é diferente.”


São as memórias, potentes, criativas, âncoras e balões ao mesmo tempo, que desenham numa cartolina. Numa cartolina que cumpre função quadro improvisado, obra de arte, tela carregando consigo veredas, morros, sementes, lideranças, fogo, inspirações e o futuro.


São as memórias de Rivânia que fecham este capítulo, apontando para o passado com o coração saudoso e, ouso interpretar, com desejo de sonho e futuro. Sentadas no chão em frente ao postinho de saúde do povoado de São João, poucos metros distantes da sala comunitária onde passamos horas pensando no presente e no futuro, sob a proteção do jatobazeiro, Rivânia me conta uma memória querida.


“A memória mais bonita é de quando eu morava na fazenda com meu pai. A fazenda fica há três quilômetros daqui do povoado e a gente vinha de manhã para a escola aqui do povoado. E tinha aquele cheiro bom, cheiro de conservação, cheiro de Cerrado. Mas agora [esse cheiro] não tem como antes”, relembra Rivânia, filha do município de São Domingos e Terra Ronca, querida criação do Cerrado. O coração sobe, como borboletas no meio-dia, mas murcha, desce com o sol poente. “Aqui não está tendo muita conservação. Ao redor do povoado até tem, só que quanto mais nos afastamos, mais danificado está o Cerrado”, ela continua.


Escutar as memórias de Rivânia funciona como uma viagem no tempo, me teletransporta para as minhas. Memórias minhas que nunca vão ser as mesmas, nunca serão alcançadas pela realidade do hoje, assim como as de Rivânia. Porque talvez nunca tenha o mesmo cheiro, porque é um cheiro abraçado pelo amor e visto pelas lentes pueris de uma outra vida, de anos atrás. 


Penso nas minhas memórias infantis de Niquelândia (GO), quando a paisagem savânica na beira da estrada ainda não era soja ou milho, quando o riacho minutos de caminhada distante ainda não tinha secado, quando o cheiro daquele Cerrado era outro. São essas e outras memórias o meu combustível para uma luta que nasceu séculos antes de mim e vai continuar depois também. É a luta pela proteção da Terra, pelo sonho do chão, pela vida em suas tantas formas diversas de encontrar ser, pelo cantar do vento de agosto no Cerrado.


Porque nunca vai ser igual a antes. O que nos resta é a criatividade para fazer continuar a ser, de uma forma ou de outra. De muitas formas possíveis.


Construção da Carta de Direitos Climáticos de Terra Ronca. Créditos: The Climate Reality Project.



São Domingos e Terra Ronca enfrentam poderosos titãs


A Grande Serpente do fim do mundo pode ser acalentada pela educação ambiental



Sementes de copaíba para fortalecer um futuro resiliente e vigilante


Enquanto titãs cercam os territórios de São Domingos, do povoado de São João Evangelista, Parque Estadual Terra Ronca e da Reserva Extrativista de Recanto das Araras de Terra Ronca, uma grande cobra adormecida carrega consigo a forma tectônica do fim do mundo. 


Movida por um conto ancestral, a grande cobra abraça o mundo: sua cabeça repousa em algum lugar próximo às cavernas de São João e seu rabo descansa no Morro do Moleque. Seus olhos abrirão, justiceiros, assim que a humanidade ultrapassar o limite da Terra, explorá-la ao violento extremo. Com sorte e bravura, talvez a grande serpente engula os (quase) intocáveis agentes econômicos no país, agentes ecocidas do Cerrado. 


Mas existe uma esperança de mantê-la adormecida com o canto da educação ambiental.


Ao longo desta reportagem, um dos nós construtivos desta tapeçaria-história é a canção Umbuzeiro da Saudade, cantada por Júlia Chaves em um ponto de costura do que é o desmatamento em Terra Ronca. Começaremos esta tapeçaria-capítulo com histórias de sementes. Sementes e serpentes.


No segundo e último dia de reunião para a Carta dos Direitos Climáticos de Terra Ronca, um jogo lúdico fez dançar criatividade, referências de luta pelo Cerrado local e soluções para o presente e futuro. Enquanto o jogo das sementes acontecia numa roda, os artistas desenhavam num mural de cartolinas, movidos por inspirações internas e externas. O mural carrega o Coletivo de Mulheres da Sociobiodiversidade de São João, a casa de Ramiro — “patrimônio imaterial de Terra Ronca”, um dos símbolos do turismo de cavernas em todo o país —, os rios, as veredas e as araras, a Serra Geral, o fogo e a Brigada Comunitária.


Júlia Chaves, ativista, guia turística e bióloga. Na parede ao fundo, os desenhos dos artistas. À direita, na parte superior, podemos ver as sementes evocadas por Jacson Gonçalves, e o Coletivo de Mulheres da Sociobiodiversidade.



E sementes. Talvez as sementes sejam a alegoria — e tecnologia — mais conectada com a Terra quando falamos de resiliência do Cerrado e suas diversas vidas. Uma delas é Jacson Gonçalves de Oliveira, motorista e artista da construção da Carta, que ilustrou sementes do Cerrado e brincou de adivinha o que é. Fez o jatobá, mascote e bastão de fala nos encontros da Carta. Baru, fruto precioso para a subsistência e bioeconomia do Cerrado. Sucupira, árvore grande e resiliente do bioma, encontrada em solos arenosos e em regiões com muita água.


Sem o conhecimento tradicional humano e não humano, as sementes podem não germinar, não florescer. O florescimento também é ancestral, assim como o vento que acolhe e faz aquecer o coração de quem chega em Terra Ronca e seus diversos territórios. Por isso, falar de sementes é falar de cultura e educação. 



O turismo de Terra Ronca e o sonho da construção comunitária


É aqui que entramos em um sonho. Sonho complexo, amplo e bonito como as águas de São Domingos. É o sonho pela cultura de educação e proteção ambiental no território. É sonho que desenha o turismo de base comunitária no território e a sociobioeconomia fortalecida. É um sonho que move o desejo por um turismo fortificado e que se mantenha alinhado com os princípios dos moradores de São João Evangelista: a preservação do Velho Cerrado.


São João Evangelista é um povoado que coexiste com o Cerrado conservado, onde a população tradicional divide o cotidiano com veredas deslumbrantes, cavernas intimidantemente fantásticas, límpidos e orgulhosos rios e uma biodiversidade fantástica de aves da família dos Psitacídeos — como papagaios, cacatuas, calopsitas, periquitos e a arara-azul-grande.


Para dimensionar o turismo em São João, é preciso contextualizar o território, que integra a Reserva Extrativista (RESEX) de Recanto das Araras de Terra Ronca e conversa, também, com o Parque Estadual de Terra Ronca.


A primeira unidade de conservação foi criada em 2006, sob gestão do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Com quase 12 mil hectares, abarca o município de São Domingos e Guarani de Goiás. De acordo com o painel de gestão, a RESEX demonstra interesse institucional em proteger os meios de vida e garantir o uso e conservação dos recursos naturais do território, tradicionalmente utilizados pela população extrativista local.



Etapa do jogo das sementes na dinâmica de construção da Carta dos Direitos Climáticos de Terra Ronca. Cada pessoa representa alguém, do território, que admira. Em determinado momento, os participantes trocam essa pessoa evocada. Créditos: The Climate Reality Project.



Em decorrência de conflitos fundiários no território, falta de áreas para exploração local e desestimulados por outras atividades econômicas ao redor, o número de extrativistas reduziu. Para lidar com essas questões, o plano pretende realizar a regularização fundiária dos imóveis privados no território (ou seja, comprar as terras ocupadas na RESEX, mantendo os moradores no local e alterando o título de “propriedade privada” para “área comunitária”). Em adição, tem interesse em formar um conselho com atores no território e promover pesquisas científicas, especialmente para dar suporte às práticas extrativistas e de conservação na comunidade.


Sob responsabilidade da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) de Goiás, o Parque Estadual Terra Ronca também divide território nos municípios de São Domingos e Guarani de Goiás. Seus 57 mil hectares abrigam um dos mais importantes conjuntos espeleológicos da América do Sul, com mágicas cavernas, grutas e dolinas na região. De acordo com o Mapeamento de Destinos Turísticos Inteligentes em Goiás, “entre as grutas e cavernas no parque de Terra Ronca, estão as 30 maiores do país e a maior delas mede mais de 90 metros de altura”. 


Ramiro Terra Ronca é o nome completo. É mais um dos símbolos socioculturais do território, uma referência tradicional respeitada pelo povoado e pelo turismo de cavernas em todo o país. Sua casa é um dos pontos turísticos do povoado, com memórias desenhando as paredes.



Os principais pontos turísticos na região são as cavernas Terra Ronca 1 e 2, São Bernardo, Angélica, São Mateus e São Vicente; Pau Pombo, Morro do Moleque, Sumidouro e Poço Rico. O Mapeamento contextualiza que especialistas em cavernas visitam o local desde 1960 e já foram estimadas, em São Domingos e Guarani de Goiás, mais de mil cavidades subterrâneas. Essas formações datam 620 milhões de anos e, do total de cavernas e grutas, apenas, aproximadamente, quarenta foram exploradas cientificamente e mapeadas.


As cavernas fazem parte da tradição cultural e religiosa regional. Em agosto, dezenas de viajantes participam da Festa do Bom Jesus da Lapa de Terra Ronca. Principal caverna do Parque, a majestosa Terra Ronca 1 reúne fiéis de cidades vizinhas e romeiros de Goiás, Tocantins e Bahia, dando continuidade à tradição do início do século. É um dos principais eventos turísticos da região, mas que, infelizmente, deixa para trás seu impacto, principalmente o descarte incorreto de lixo.


Cachorrinha Caramela, no canto inferior direito, parece quase pequena demais diante das grandes aventures do Cerrado.



Muito provavelmente a cachorrinha Caramela, amiga da família do Ramiro Terra Ronca, estará acompanhando os turistas da Festa do Bom Jesus neste agosto. Apoiadora das classes dos condutores, a Caramela traz, aqui, mais um sonho para o povoado: a estruturação do turismo local, fonte importante da renda dos moradores. Um dos pontos levantados na reunião é a imagem do condutor turístico como, também, um agente de conservação, alguém vigilante e protetor da sociobiodiversidade local.


Para que isso aconteça, é necessária a qualificação e profissionalização dos condutores. Isso será possível quando a gestão do Parque valorizar a atuação da classe e percebê-los como fiscais e monitores do território, com autonomia reconhecida e integrada ao Parque, explica Júlia Chaves. Um dos requisitos para o reconhecimento dos condutores é a formalização, já existente na organização no povoado: a AEMA, Associação Ecológica dos Monitores Ambientais, os representa.


A ativista e condutora contextualiza que o ganho com os passeios turísticos é, muitas vezes, maior do que o das outras rendas complementares. Assim, é possível garantir sustentabilidade financeira com o turismo regional, algo que teria ainda mais segurança com a consolidação da prática nos territórios.


Entretanto, uma das dificuldades enfrentadas pelos guias — e que poderia ser  melhorada com medidas simples — é  a divulgação dos passeios, realizada pelo Conselho Municipal de Turismo. Atualmente, existem entre 30 e 40 condutores locais e a maior parte dos visitantes conduzidos são encontrados individualmente, a partir da cartela e comunicados de cada condutor.


A arara-azul-grande ocupa um espaço importante na construção cultural e de proteção ambiental em São Domingos, simbolizando a mudança na forma com que lidamos com a Natureza e o Cerrado. Créditos: Ana Cotta.



Um dos desejos levantados pela comunidade é o fortalecimento da imagem de Terra Ronca. Para isso, um dos símbolos para ser transformado em mascote local é a arara-azul-grande, espécie ameaçada de extinção e presente na região. Maior psitacídeo do mundo, a arara pode ser ícone de proteção do Cerrado de Terra Ronca, mobilizando pessoas para participarem da causa e, conjuntamente, movimentar a venda de artesanatos e outros produtos do povoado e proximidades.


“Quando você agrega produtos com conscientização para preservar, o consumidor vai priorizar o produto que tem um apelo ambiental, ainda mais a arara-azul. O buriti também é um exemplo de produto com proteção das veredas. Isso é combinar a fala com o produto e possibilita o retorno financeiro alinhado com a proteção e preservação ambiental”, Andreia Chavier, museóloga e filha de São Domingos, elabora a ideia. 


As trilhas e demais passeios no Terra Ronca podem ser complexas e cheias de descobertas para os visitantes. Podem ser um espaço rico para educação ambiental, aprendizados sobre a biodiversidade e riqueza do Cerrado. Esta é a visão de quem para sobre a pequena ponte em frente à caverna Terra Ronca 1.



Conseguimos destacar, por exemplo, 18 psitacídeos na região. Esse vai ser um dos roteiros que iremos propor no projeto: a rota dos papagaios. [O Terra Ronca] é uma região com alta riqueza desse grupo, que é super carismático e atrai as pessoas”, contextualiza o professor e pesquisador Arthur Bispo, coordenador do projeto Óia Passarinhar. “Dentro desse grupo, temos dois destaques: tiriba-do-paranã, endêmica do Vão do Paranã, ocorrendo nessa região até um pedaço de Tocantins; e temos a arara-azul”, continua. O Terra Ronca é um dos poucos pontos, em Goiás, com ocorrência da espécie. 


O Óia Passarinhar é um projeto educativo voltado para o incentivo à observação de aves e o turismo decorrente da prática de observação. É ligado à pesquisa, com parcerias entre a Universidade Federal de Goiás e Universidade de Brasília, e atividades territoriais, com ações científicas de mapeamento, identificação e diagnóstico das aves nos territórios e de promoção ao turismo comunitário local.


Ao final, todas as pesquisas do projeto se transformarão em produtos educacionais úteis para o turismo comunitário em Terra Ronca, com uma relação integrada e também direcionada ao trabalho social e economia circular e solitária. Assim, com mais este suporte de conhecimento, a comunidade tem mais uma ferramenta para garantir o sustento a longo prazo, por meio deste modo de turismo, e a preservação ambiental do território. 


Os diversos ambientes e ecossistemas na RESEX de Recanto das Araras de Terra Ronca, no Parque Estadual e no povoado de São João, contribuem para a alta biodiversidade na região. Por isso, medidas como a indenização dos terrenos, ordenamento territorial nas unidades de conservação, cercamento de áreas relevantes para proteção ambiental, recuperação de áreas degradadas e retirada de ocupação em locais com uso indevido e indiscriminado do território são pontos destacados pelo professor.


Como possibilidade de proteção, adiciona o fortalecimento das unidades de conservação regionais, criando uma rede de unidades de conservação em locais como Cavalcante, Alto Paraíso, São Domingos e Guarani de Goiás. O incentivo às Reservas Particulares de Patrimônio Natural (RPPN) também entra como outra estratégia, especialmente considerando a ‘identidade do nordeste goiano’.


“A região do nordeste goiano tem uma identidade diferente, uma identidade que é favorecida pelo terreno, relevo e pelas paisagens naturais… São as melhores áreas conservadas  no estado. Temos que fortalecer isso, fortalecer uma economia de base comunitária, solidária e circular, com a qual a população consiga se manter e consiga interagir com o meio ambiente de forma sustentável”, Arthur Bispo continua. Uma das atitudes é frear o avanço do agronegócio predatório na região e pensar formas diferentes de desenvolvimento. 


“A gente não precisa replicar o que já acontece em outros lugares do estado, temos que entender que a identidade local pode ser diferente. Podemos ter outras ações e construir uma economia forte, desde que a gente saiba como agir. Hoje, temos riquíssimas biodiversidade e paisagem. O turismo pode ser uma das saídas, para que a gente consiga conviver com o ambiente e a biodiversidade e desenvolver a região da maneira que ela precisa ser desenvolvida”, complementa.



Logo pela manhã, minutos antes de começarmos a primeira reunião com o povoado, um tucano nos recebe.



A relação entre seres humanos e não humanos 


Dançando ainda com a educação ambiental e a cultura de proteção, este sonho recapitula o que lemos até aqui. Por isso, as palavras de Rivânia Vieira voltam. “Algumas ameaças aqui do território são desmatamento, especialmente para retirada ilegal de madeira. O fogo também é um problema, assim como a caça. Quase não vemos animais aqui por conta da caça intensa”, a cerratense sintetiza.


Ao longo das discussões para a Carta do território, a caça é uma questão delicada e marca a história. Por muitos anos, o município de São Domingos fazia parte do conhecido “Corredor da Miséria”, expressão associada ao nordeste goiano. Especialmente, por conta da desigualdade e dificuldade de acessos pela população regional, consequências históricas da forma de ocupação do estado e da posição geográfica do território.


Ao longo das últimas décadas, enquanto o sul de Goiás se modernizava, o norte do estado foi isolado, tendo a pecuária extensiva como sua principal fonte de economia, o que acentuou problemas socioeconômicos. Neste contexto, a caça foi uma das saídas para a subsistência local à época.


Atualmente, o cenário é outro. Júlia Chaves, ativista, condutora turística e bióloga, explica que a prática predatória se transformou em algo cultural no município. “A região já foi conhecida como Corredor da Miséria, mas, hoje, uma pessoa não tem a necessidade de caçar aqui. Tem gente que caça dez unidades e vende na cidade e não tem punição. A pessoa pode ser presa pela arma, mas não pela caça, então paga apenas uma fiança e vai embora”. 


A ativista explica que as principais espécies procuradas na caça são tatus, veados e capivaras. Algumas pessoas caçam quantidades específicas e vendem na cidade ou para compradores conhecidos. Os casos de subsistência podem não ser pela necessidade real: muitas vezes estão associados ao lazer e ao hábito de comer determinados animais.


Por conta da prática cultural, a região não é vista como amistosa para os animais silvestres, que não aparecem com frequência. Inclusive, os moradores relembram que a retomada das aves no território é recente, inibida, antes, pelo tráfico.


“As pessoas, às vezes, acham que a palavra crime é utilizada apenas para homicídio, roubo ou algo assim. O crime ambiental é passado de geração em geração. Por que eu vou dar um estilingue para o meu filho, se eu quero que as aves sejam conservadas? Como eu permito que uma loja agropecuária venda estilingue e para quê? Para quê vou permitir a fabricação de rede de arrasto, se caçar com rede é proibido?”, Júlia questiona.



Artistas desenham suas inspirações diante da dinâmica dos jogos das sementes e também o que sentem a partir das conversas estruturais para a Carta de Direitos Climáticos do território. Créditos: The Climate Reality Project.


A educação ambiental e o sonho da cultura de preservação é a resposta para questões além das levantadas pelas reuniões. Uma comunidade preocupada e conhecedora da região que vive, apoiada tanto pelos saberes tradicionais quanto acadêmicos, é uma comunidade mais resiliente para lidar com o futuro climático.


A forma como lidamos com o meio ambiente é cultural e pode parecer até “natural”. “É ‘natural’ porque aprendeu com o pai que pode colocar fogo na vereda para o gado comer o pasto… A pessoa que cria o gado e não se prepara para a seca, quando ela vêm, procura pastagem e acha que pode colocar o gado em qualquer lugar. Como se isso fosse problema dos outros”, complementa Júlia.


O mesmo vale para a caça, quando pais ensinam seus filhos a caçar. “É uma cultura passada, uma cultura de maus tratos. Talvez, um sonho de conservação seja o conhecimento ambiental, porque essas ações demonstram falta de conhecimento. A educação também precisa mudar. Um sonho é a noção de meio ambiente e conservação, também passado nas escolas”.


Nós, humanos, coexistimos com diversas outras espécies de vida. A biodiversidade da região Terra Ronca também chamou a atenção de pesquisadores colaboradores do Programa de Conservação Mamíferos do Cerrado (PCMC). Um dos focos de trabalho no Programa (alocado e movido por meio da Universidade Federal de Catalão) é a interação entre seres humanos e a fauna no Parque Estadual Terra Ronca, explica Bruna Lima, bióloga e mestre em conservação da biodiversidade. Para conhecer a fauna é, também, preciso conhecer as pessoas que convivem com esses outros seres. É preciso ouvir e ver histórias.


“Algo que tentamos fazer no nosso projeto é identificar experiências que as pessoas têm com os animais da região e suas percepções em relação a eles. É difícil uma pessoa da região que não cite mais de um tipo de animal que ocorre ali, de ema a tatu, a raposa e onça-pintada, cobra e peixes. Todas as menções vêm associadas a uma história, da criança que conta sobre sua experiência pescando com o pai, a colheita de buritis e a mordida da cobra, a suçuarana com filhote que o senhor viu a cavalo quando foi buscar o gado. Todas estas histórias são indicativas da biodiversidade em Terra Ronca, biodiversidade que podemos perceber ao fazer as trilhas na região em busca de vestígios de mamíferos”, contextualiza Bruna Lima. 


Até o momento, o Programa já organizou três expedições ao Parque Estadual Terra Ronca, explica o pesquisador e doutor em ecologia Frederico Lemos, e a biodiversidade encontrada no território já é muito relevante. "Temos detectado várias espécies especiais no Parque Estadual Terra Ronca e na RESEX, destacando algumas que possuem relevância maior para o nosso projeto, como a onça-parda, a raposa-do-campo e agora, mais recente, a onça pintada e o lobo-guará. Então, é uma área de alta relevância para a biodiversidade goiana", continua.


"Esse mosaico de unidades de conservação, o grau de conservação e a riqueza de fauna que encontramos somente em três expedições breves mostra o potencial que Terra Ronca tem como polo de biodiversidade goiano, que merece toda a tenção possível e em diferentes escalas", complementa o co-coordenador do Programa, também coordenado pela pesquisadora e bióloga Fernanda Cavalcanti desde 2009.


Os buritis e as veredas de Terra Ronca fazem parte da relação sociocultural do território. Onde esta foto foi tirada, é possível ver os Três Morros e a Serra Geral, a paisagem de buritis e pássaros fazendo com que nós, meros humanos, pareçamos tão pequenos.



Nesse cenário, o território é palco de diversas interações, conflitos, sonhos e sementes. Por isso, é um contador de histórias como ninguém. Em sua complexidade, atravessa — e requer — uma rede de transformações. 


“Precisamos trabalhar para que as Unidades de Conservação (UCs) da região não sejam ilhadas em meio a expansões urbanas, monoculturas e empreendimentos de alto impacto. Isso precisa ser feito fortalecendo as conexões que os moradores têm com o ambiente e com o Cerrado, respeitando suas necessidades e buscando alternativas que possam promover a conservação da biodiversidade justa e equitativa”, complementa a pesquisadora Bruna Lima.


Uma das espécies detetives do PCMC, a suçuarana é um animal que instiga diversas discussões ambientais. A partir dela, é possível pensar em interações ecológicas e áreas prioritárias para conservação, planejamento urbano, socioeconomia e participação social, explica a bióloga e mestre em conservação Bruna Lima. Crédito: Animalia.bio.



Também uma espécie detetive, a raposa-do-campo é endêmica do Cerrado! Frequentemente confundida com o cachorro-do-mato (que muitos na região de Terra Ronca também chamam de raposa), a raposa-do-campo leva fama de comedora de galinhas, apesar de sua dieta ser majoritariamente de cupins e besouros, por exemplo, acrescenta a Bruna Lima, bióloga e mestre em conservação. Crédito: Viviane Pigatto.



O desejo de Júlia Chaves e a percepção de Bruna Lima ecoam, também, nas palavras de Maria da Silva. “O sonho é conservar o Cerrado. Que venha o reflorestamento, [que possamos] levar sementes onde não tem e que saibamos respeitar os animais, aqueles que mais fazem o reflorestamento do nosso Cerrado. Se conservar os animais, já vai ter muita mudança.”


Para esse sonho se transformar em realidade, as reuniões para construção da Carta sintetizam: é preciso uma estrutura pública engajada com a promoção de práticas educativas sistemáticas e cotidianas, juntamente com fiscalização em todo o território. É preciso vontade política.



Educação ambiental como ferramenta de transformação


A educação atravessa tudo.


Conversar com Maria da Silva traz acalanto para quem é eterna admiradora de professores e do poder da educação. Ao longo de seus 27 anos de docência — 17 na alfabetização e 10 ensinando Geografia —, a professora, agora aposentada, sempre buscou conciliar o ensino e a conexão com o Cerrado.


“Eu trabalhei muito com educação ambiental na escola. Trabalhava mostrando a realidade: quando chegava a época dos frutos, formávamos uma equipe de professores para levar os alunos ao campo. Para pegar os frutos e entrar em contato com o Cerrado. Depois, os alunos produziam textos sobre o passeio e a experiência era aproveitada na Matemática, na Geografia, na Ciência, na História e na Educação Física. Era um projeto interdisciplinar trabalhado em sala de aula”, relembra Maria da Silva.


O povoado de São João Evangelista tem sede por conhecimento. Esse conhecimento atravessa tanto a educação básica no município como também as pontes entre universidades públicas e o território. Afinal, esses múltiplos saberes, ao entrar em contato com os poderosos saber e prática tradicional, potencializam a mudança de comportamento e a melhora da relação entre seres humanos e seres não humanos.


Absolutamente todas as questões ambientais nesta reportagem foram levantadas e debatidas pelos moradores, nas reuniões do começo de maio, para a construção da Carta de Direitos Climáticos de Terra Ronca. E, em cada um desses tópicos, fica clara a vontade de saber mais sobre o território para que, assim, possam cobrar ação e posicionamento de instituições, entidades e gestores. Para que, também, possam participar ativamente das soluções.


Está tendo contaminação, de fato, nas nossas águas? Se sim, essa contaminação já afetou quais rios? Quais são as áreas mais vulneráveis à erosão no território? Qual a biodiversidade em espécies aquáticas nas cavernas e como protegê-las? Quais são os riscos, para as cavernas, do aumento das chuvas torrenciais? Como aumentar a resiliência do território para lidar com a seca? Qual a relação e conexão entre as águas do Terra Ronca e as cavernas? Como ler o passado do território, a história, por meio das cavernas?


Essas são apenas algumas das perguntas evocadas, ainda esperando por respostas. Respostas que podem e devem ser construídas com a ação dos moradores e dependem, também, do fortalecimento da infraestrutura educacional no município. 


Por isso, falaremos de mais um sonho.


Para que os conhecimentos científicos retornem à comunidade — pensando que, apesar de alguns dos projetos serem de pessoas fora da região, dependem diretamente do apoio da população local para serem construídos —, Andreia Chavier sugeriu a criação de um sistema de análises e pesquisas realizadas no território. Assim, a comunidade acessa aquilo que construiu junto, aquilo que participou. E aprende, em coletivo, sobre a terra onde vive.


Casa de artesanatos de Maria Cober, uma das principais representantes do Coletivo de Mulheres da Sociobiodiversidade.



Sustentabilidade e fortalecimento através do Cerrado


Para fazer os sonhos se tornarem realidade, as reivindicações do povoado envolvem uma mudança na estrutura econômica e política do município de São Domingos. Ao longo das reuniões, ressaltam o quanto é necessário o cuidado municipal contra o tráfico de aves e medidas mais rígidas diante da caça predatória. Pensando na preservação — e nas palavras de Maria da Silva —, um possível banco de sementes do Cerrado no território também veste os trajes de sonho.


E, assim, o cuidado com o Cerrado pode ser fonte de emprego e símbolo da força de São João Evangelista. Um dos exemplos é o Coletivo de Mulheres da Sociobiodiversidade de São João, ativo há um ano, explica Rivânia, uma das integrantes. Produzem diversos artesanatos e também ceras e alimentos tradicionais do Cerrado. Em 2023, o coletivo viajou para feiras, levando o nome de São João Evangelista para outros municípios.


“O sonho que temos aqui é gerar uma renda do trabalho de artesanato, porque a renda é pouca para o sustento da família. Nosso sonho é ver São João crescer, não só no turismo, mas também na educação e no lazer, por exemplo”, conta Rivânia. O trabalho das mulheres do coletivo tem o potencial de ser uma marca importante, um símbolo para a comunidade. Encarnado, uma relação saudável entre Cerrado e seus povos. 


“O Cerrado significa tudo. Nós tiramos tudo dele. É magnífico: as meninas aqui do artesanato tiram o material do Cerrado. Eu quero aprender a fazer creme e produtos com a mama-cadela, que trata, por exemplo, vitiligo”, complementa. Fortalecer a autonomia do coletivo significa fortalecer o presente e a possibilidade de futuro em São Domingos e no Cerrado. É também uma semente que empodera tanto a economia do povoado quanto a do município, abrindo possibilidades para multiplicar práticas que garantam a sustentabilidade de renda das pessoas.


As sementes do Cerrado são uma poderosa e resistente metáfora para construção e manutenção de um futuro possível. Na imagem, podemos ver araticum, ipê amarelo, jatobá, ingá cipó e cajuzinho, sementes prontas para ser plantadas em um lugar um tanto quanto distante de Terra Ronca: em Cabeceiras, Goiás.



Olhar para o potencial econômico do território, considerando a  autonomia das comunidades e a sustentabilidade ambiental, é uma demanda que não está no plano de ação da gestão municipal, de acordo com os moradores. O investimento é direcionado, principalmente, para a monocultura da soja e do milho, ao invés de buscar fontes alternativas e que, de fato, retornem integralmente para o município.


Assim, esta reportagem e a Carta de Direitos Climáticos de Terra Ronca são espaços de responsabilização das gestões públicas e convite às iniciativas sociais, educacionais e privadas para promover e empoderar a agência territorial. 


Porque é necessário mudar, radicalmente, a forma com que, como sociedade, lidamos com o Cerrado. O corrente sacrifício do bioma é justificado pela perspectiva econômica. Ao incentivar trabalhos de coletivos, cooperativas e associações criadas pelas comunidades nos territórios e que trabalham com uma outra lógica de economia — muito distante da predação atual —, estamos possibilitando um futuro.


“Você anda pelo estado de Goiás e vê lavouras e lavouras de soja e milho espalhadas pelo estado inteiro, e é um alarme para ficarmos atentos, porque precisamos mudar. Precisamos de uma transição, precisamos de uma agricultura mais sustentável, com menos produtos [químicos]”, resgato aqui a fala de Daniela de Melo, especialista no impacto dos agrotóxicos na vida humana e em outros animais.


A biomédica continua. “Temos especialistas, principalmente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e de universidades, pensando e manipulando produtos menos tóxicos e mais ecologicamente relevantes, com menos impacto para o meio ambiente e o ser humano. É preciso haver estímulo para uma agricultura mais sustentável. No Cerrado, a gente precisa conversar mais sobre isso e mostrar essas informações, para minimizar os impactos tanto ao ser humano e ao meio ambiente como um todo”.


Essa mudança deve avançar para além da perspectiva química, incluindo a lógica (e o seu fim) do desmatamento para grandes lavouras de monocultura. E, quem sabe, podemos construir uma nova — e revolucionária — forma de nos relacionarmos com o Cerrado.


Para isso, o mover é necessário. A confluência das águas e da vida, a dança dos rios e das árvores, intimamente conectadas com o vento.


“Quando a gente se movimenta, quanto mais nos movimentarmos e agir, mais visibilidade teremos”, reforça a museóloga Andreia Chavier, também uma das autoras da Carta.


Gostaria de acrescentar algo à fala de Andreia. Quando nos movemos, nos encontramos. Nos multiplicamos, cheios de ideias diversas. E criatividade. É a nossa chance de construir um futuro.



 

*Maria Alice e Ana Júlia viajaram à Terra Ronca com o apoio do Climate Reality.


Esta reportagem especial faz parte da edição Goiás do projeto 'Faça chuva ou faça sol, meu Cerrado já está vulnerável', em curso. Conheça melhor o projeto!





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