Uma andorinha não faz verão. Ou podemos dizer: um pequizeiro não faz Cerrado. Mas, sem ele, tampouco o Cerrado existiria. Vamos juntos nessa!
Por Dodó Ribeirana, Núcleo de Educação Socioambiental e Comunicação Científica
Sabemos bem que o avanço da crise climática e da destruição de ecossistemas dá uma sensação de vertigem fervorosa na gente. É difícil ser minimamente informado e não se descabelar de desespero.
A progressão inconsequente do capitalismo e da colonização devasta a vida em suas múltiplas expressões. Extinção em massa de espécies, ecocídios, extermínio de populações humanas, aniquilação de culturas, degradação de ecossistemas, invasão biológica… O puro descaso com tudo o que há de mais importante.
Sentimos as dores todas justamente por nos sabermos parte disso tudo. Em cada rio morto, em cada árvore derrubada, em cada povo violentado, em cada animal que perde seu habitat, lá se vai uma parte nossa.
Integramos essa complexa e maravilhosa ecologia. Sem ela, morreremos sem recursos básicos como água, abrigo e alimento, como é óbvio. No entanto, antes disso, morreremos em nossa subjetividade, em nossa constituição simbólica, de memória, parceria e ligação cultural e afetiva com tudo e todos que constituem nossa ecologia.
Sei (e como sei!) da aflição que bate ao ver o tamanhão do problema. Ele é grande mesmo, não douremos a pílula. E precisa de soluções igualmente grandes.
Precisamos de demarcação de territórios indígenas e de comunidades tradicionais. Precisamos de novas lógicas comerciais não baseadas na exploração da natureza e de seus povos. Precisamos de mais unidades de conservação e áreas protegidas. Precisamos de reforma agrária. Precisamos de ações em massa de restauração de ecossistemas. Precisamos do poder público atento, atuante, propositivo e rígido com o cumprimento das leis ambientais e de direitos humanos. Precisamos de uma legislação ambiental bem escrita e rigorosamente cumprida. Precisamos de mudanças profundas na nossa cosmovisão, na nossa noção de ética, de solidariedade, de alteridade, de pertencimento e integração com o mundo. Precisamos de muita educação pública, gratuita e de qualidade para falarmos sobre isso tudo.
Caramba, gente, não é pouca coisa mesmo. Mas as soluções gigantes não surgem do nada. Elas têm que ser construídas e cultivadas até crescerem, da mesma forma que cada planta é responsável pela formação de uma nuvem de chuva.
Uma andorinha não faz verão. Ou podemos dizer: um pequizeiro não faz Cerrado. Mas, sem ele, tampouco o Cerrado existiria.
Propomos que a gente assuma o que já sabemos: somos parte, irrevogavelmente, de tudo. E, por isso, podemos integrar um movimento e fazê-lo crescer na boca do povo até que ganhe força para realizar coisas grandiosas. E que olha: já eram grandiosas ainda ali, no comecinho. Porque na semente do araticum, mora já o pé inteiro.
Então bora! Segue aqui algumas ideias do que você pode fazer para ajudar a proteger o Cerrado do desmatamento e da crise climática:
Perceba e cultive o Cerrado em você. Observe como o bioma atravessa a sua vida, tanto no seu corpo quanto na sua subjetividade. A forma que as relações ecológicas do bioma se manifestam naquilo que você come, na sensação térmica e de umidade do seu corpo, nos bichinhos que vêm te visitar, os afetos e memórias que suas paisagens evocam. Você pode refletir que formas de vida existiam na sua rua antes do asfalto, ou então descobrir qual o rio mais próximo da sua casa, ainda que esteja soterrado por baixo da cidade. Ouça músicas, leia poesias, assista filmes atravessados pelo Cerrado e seus povos. Fortaleça suas raízes e se sensibilize para a forma como o ambiente e você se misturam. Caso você não seja um habitante do Cerrado, encontre e consolide sua relação com ele. Tanto afetivamente quanto materialmente, afinal, os biomas dependem um do outro para o próprio equilíbrio.
Fale sobre isso! Fique tranquilo, não precisa virar palestrinha, não. Se você aguçou sua percepção para a forma como você e o Cerrado estão intimamente ligados, o assunto surge muito naturalmente. Chame a atenção das pessoas para a fauna e para a flora, não normalize coisas como desmatamento e monocultura, lembre-as sempre que toda terra guarda vidas que devem ser levadas em consideração. Dá muito para perceber quando a conexão de alguém com um tema é profunda, e suas palavras sinceras, somadas a uma escuta respeitosa, podem gerar efeitos maravilhosos.
Leia sobre o assunto. Procure boas referências (aqui no site da AVINC temos muitas!) para entender melhor a situação não só do ponto de vista sensível, mas também do intelectual. Além de estar mais preparado para conversas, você vai conhecer e criar relações com pessoas que estão na mesma luta que você.
Crie pontes! Essa parte é bem gostosa. Quanto mais você entra no universo socioambiental, mais gente você conhece que é parceirona na causa. Converse com as pessoas, acompanhe elas, esteja por perto. Parece pouco, mas não é: isso é tecer redes, e assim vamos nos fortalecendo. Da mesma forma que as plantas precisam estar juntas para formar chuva, lembra? Muitas coisas potentes podem surgir dessas conexões. Fora que vai te deixar antenado no que está rolando.
Conheça e divulgue a biodiversidade cerratense. O Cerrado tem níveis estratosféricos de destruição por uma série de motivos, um deles certamente é o desconhecimento das pessoas em relação a ele. É comum termos na cabeça aquele estereótipo de natureza como uma floresta tropical, como se só ela fosse responsável pela biodiversidade e equilíbrio sistêmico. Muita gente olha para uma paisagem de Cerrado e vê um "nada", ou um "mato", algo sem importância ou relevância alguma. E, sem dó nem piedade, derruba para fazer qualquer outra coisa. Precisamos divulgar aos sete ventos a riqueza vasta e maravilhosa que é a biodiversidade cerratense e ajudar a torná-la de conhecimento geral. Você pode fazer isso identificando plantas, animais e chamando a atenção das pessoas para eles. Quem sabe fazer plaquinhas de identificação para espécies locais no seu bairro ou em algum parque próximo? Uma coisa bem bacana também é ir na feira procurando certos frutos nativos, perguntar deles aos vendedores. Muitos feirantes até têm os frutos em seus quintais, mas não comercializam por não ter demanda. Peça para trazerem na semana seguinte, faça isso gerar conversas na feira, compartilhe alimentos.
Plante! No espaço que você tiver, seja um quintal, uma varanda ou só um vasinho na janela, plante espécies nativas da sua região. É inacreditável a quantidade de plantas lindas e saborosas que não ganham espaço em nossas cozinhas ou paisagismo. A indústria de plantas ornamentais é forte, mas seja resistência! Você vai trazer plantas que conversam com a fauna local e que prestam uma gama de serviços ecológicos muito grande. E vai saber? Às vezes seu plantio gera sementes que vão multiplicar seu vegetal do Cerrado por aí. Pode ser mais difícil de achar mudas nativas do que a maior parte das plantas do mercado, mas é super possível. Pesquise produtores responsáveis, converse com pessoas e lembre-se: jamais retire um espécime de seu habitat para transplantá-lo em sua casa.
Exerça a política institucional. Fique ligado nos debates que têm rolado, nos processos legislativos, executivos e judiciais, procure saber e participar de consultas e audiências públicas. Esse campo político é uma chave super importante para pautarmos ações macro. Você também pode se aproximar de coletivos que atuam politicamente na área socioambiental.
Aproxime-se de povos do Cerrado. Quilombolas, ribeirinhos, indígenas e outros tipos de comunidades tradicionais guardam conhecimentos ancestrais valiosos sobre a terra. Conheça os que estão próximos a você, troque aprendizados com eles e contribua em mobilizações. Relação é algo que se constrói com o tempo, mas fique atento a possíveis chamadas e aja sempre de forma respeitosa e não invasiva.
Apoie negócios locais. Divulgue e fortaleça o trabalho em pequena ou média escala de produtores do Cerrado. Em um mundo industrializado e pautado pelo poder, somos rodeados de objetos desencantados, produzidos em série por máquinas, grandes mentes publicitárias, humanos explorados e empresas que deixam para trás apenas terra arrasada. A ideia é girar a economia o quanto pudermos para o nosso lado. Muita gente está há gerações criando saberes e cultivando relações de respeito com a terra. Quando puder, recorra a essas pessoas.
Reflita sobre suas possibilidades de contribuição. Aqui, não tem fórmula. Como o Cerrado, somos diversos, e cada um tem algo bem particular a oferecer. Se pergunte como suas habilidades, vocações ou circunstâncias podem contribuir para a proteção do Cerrado. Cada vez que paramos para pensar no assunto, novas ideias que ainda não nos tinham ocorrido podem surgir. Solte a imaginação, costure sua força na força do mundo e vamos nessa!
Poderíamos resumir esses 10 itens em uma única recomendação: deixe-se permear pelo Cerrado, e deixe o Cerrado ser permeado por você. Perceba-se como parte de um ecossistema biológico e cultural que se cria e recria.
O Cerrado é vereda, é tamanduá, é baruzeiro, é campo, é capoeira, e é também gente. O Cerrado começa em você, em mim, em nós. Sejamos Cerrado vigoroso, expressivo, biodiverso, sábio, doce e guerreiro. Daí, podemos seguir restaurando, conservando e zelando por outras expressões do bioma.
É um trabalho bem pedagógico, tanto com nós mesmos quanto com as pessoas ao nosso redor. Uma pedagogia silenciosa, que se mistura à vida e infiltra-se na cultura. Trabalho de formiguinha, certamente. Mas as danadas movem montanhas.
Fluidez do Cerrado, por Miguel Biasoli