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Foto do escritorA Vida no Cerrado

Carta simbólica de jovens cerrativistas do Sul Global para a implementação de ações concretas ante a crise do clima e da biodiversidade. 

As evidências empíricas da correlação entre a produção de commodities e os padrões de consumo frente às emissões de gases de efeito estufa, que provocam as mudanças do clima, ganham crescente consistência e fundamentação científica. A partir deste contexto, o fato concreto e inconteste é uma tendência crescente e irreversível ao agravamento da crise climática e de eventos extremos, como ondas de calor, incêndios e secas em nosso território. 


Esse novo paradigma climático irá impactar de forma intensa e rigorosa o meio ambiente, a sociedade, a economia e, portanto, nossas vidas. Nós, jovens. Nós, sul global. Nós, cerratenses. 


A região onde o Cerrado está localizado é famosamente conhecida como o “celeiro do mundo”. A vegetação nativa deste território está sendo devastada pela agricultura industrial e pela criação de gado, os exemplos mais dominantes do poder destrutivo do extrativismo na região. Esse desenvolvimento, impulsionado pela devastação sistêmica do ecossistema e seu esplendor natural, é sustentado por breves períodos de crescimento econômico, apoiados pelo uso intensivo de recursos naturais. Em vez de possibilitar uma perspectiva socialmente justa, economicamente sustentável e ecologicamente restauradora para o manejo do Cerrado e seus recursos, essas indústrias extrativas refletem as crescentes demandas por insumos, energia, matérias-primas e alimentos de países mais ricos, especialmente aqueles no Norte Global.


A dependência histórica da economia de nosso país nessa abordagem destrutiva impõe uma limitação e dificuldade insuperáveis para possibilitar uma transição sustentável longe da dependência do Brasil na produção de commodities em direção a uma economia mais sustentável e inclusiva enraizada na prosperidade compartilhada. Além disso, a busca contínua pelo crescimento alimentado pela erradicação de ecossistemas inteiros também é caracterizada por um risco social iminente. Uma parcela significativa da população brasileira ganha renda que está menos de 1,8 vezes acima da linha de pobreza, o que significa que qualquer choque econômico ou relacionado ao clima — cada vez mais provável se persistirmos com o status quo — poderia rapidamente mergulhar esse grupo na pobreza.


Ainda, o risco da mudança climática é irrefutável. A evidência disponível sugere que, pelo menos para a primeira parte deste século, é inevitável um aumento da temperatura. 


A injustiça ambiental designa o processo iníquo de apropriação dos benefícios e distribuição dos riscos e danos ambientais. Enquanto perdemos nossos bichos singulares e vemos nossas adoráveis árvores tortas, arbustos e gramíneas nativas desaparecerem, o norte se alimenta a baixo custo e com muito luxo. Sentimos os incêndios queimarem nossas matas, o calor supitar a pele, o rim sobrecarregado, o respirar pesado, a fadiga chegar. Ela chega no corpo aos colapsos e chega na alma atordoada com a insegurança de não haver mais Cerrado amanhã. Afinal, um hotspot. Palavra de efeito, mas com pouco efeito prático, pois nada tem sido de fato feito para deter seu fim. E quente, cada vez mais quente, o bioma vem sendo sacrificado em nome do dito “progresso econômico”.  


Usurpado até ser desertificado, os 65 milhões de anos do Cerrado são menosprezados. A vegetação nativa que viveu eras é trocada por monoculturas meramente temporárias. Brota lágrima nos olhos ao pensar que essa nova geração, que já está aí florescendo, não tenha o prazer de ver o caminhar desajeitado do lobo-guará e o nariz engraçado do tamanduá. Que talvez se perderá na memória da infância o que é o pequi e o baru. 


A previsão para a savana mais biodiversa do mundo é catastrófica. Com a extinção de 397 espécies de plantas endêmicas até 2050; o desequilíbrio no processo de adaptação da vegetação lenhosa ao calor intenso, já que o período de seca tende a aumentar; a perda de vegetação arbórea e arbustiva, e predominância de espécies herbáceas devido a sua capacidade de regeneração mais rápida.


De longe, as potências neocoloniais e seus representantes nacionais tiram de nossas terras a vida. Derrubam nossas árvores de raízes longas. Os rios não correm como deveriam. As chuvas não caem como vinham. A estiagem bate. A seca chega. A vegetação queima. Os bichos somem. 


O Cerrado já perdeu mais da metade de toda a sua vegetação nativa. O motivo principal é o avanço da agropecuária no território. O bioma já é considerado o mais afetado por queimadas e produção de culturas de soja e cana-de-açúcar, conforme o relatório do PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente). Somente no primeiro trimestre de 2023, o desmatamento cresceu 35% em relação ao mesmo período de 2022, segundo dados do SAD Cerrado (Sistema de Alerta de Desmatamento do Cerrado).


Elimina-se, assim, os últimos corredores ecológicos, onde circulam e sobrevivem a fauna e flora nativas remanescentes. Disso, nos sobra a consequência. A extinção de espécies a partir da diminuição e fragmentação de seus habitats. Pelo menos 901 espécies do Cerrado estão ameaçadas de extinção, incluindo 266 espécies da fauna e 635 espécies de flora.


O Cerrado estoca o equivalente a 13,7 bilhões de toneladas de dióxido de carbono. As práticas que convertem a vegetação nativa em áreas de monocultura e pecuária emitem cerca de 55,5 milhões de toneladas de CO₂ por ano. Além das áreas que estão abertas, o Código Florestal, legislação brasileira que regula o uso de vegetação nativa em propriedades privadas, admite que outros 325 mil km² de vegetação nativa possam ser legalmente desmatados no Cerrado. Além da perda incomparável de biodiversidade, essa devastação poderia gerar uma emissão adicional de 3,2 Gt de Co2e. 


O que resta do Cerrado corre, então, perigo de entrar para a estatística do desmatamento ou de ser afetado pelas queimadas, intensificadas pela dificuldade de regeneração da biomassa das árvores que diminui a cada novo incêndio. De 2000 a 2019, o Cerrado foi o bioma brasileiro mais afetado pela ocorrência de incêndios, sucedendo em 41% de sua área. As previsões são de que haja um aumento de 22% na área queimada até 2050. Em um contexto pessimista com 4,5 — 8,5 °C de aumento, entretanto, o Cerrado corre um sério risco de extinção, já que as estimativas apontam para um salto de 39% a 95% de aumento na área queimada até 2100.


A seca, que já ameaça cada vez mais, aumentou 65% em incidência no período 2010-2019 em comparação a 1950–1959. O volume de evapotranspiração é, em média, 60% menor nas áreas com cultivo do que nas com vegetação nativa. A falta da umidade do ar agrava a estiagem e adia o início da estação chuvosa, encurtando o período produtivo. A ciência diz que as mudanças do clima podem diminuir em 53% a vazão da bacia do Araguaia-Tocantins, que abastece nossos lares e gera nossa energia.


O tal desenvolvimento beneficia a poucos, tendo sido realizado imprudentemente, levando a um aumento na concentração de riqueza em uma sociedade já extremamente desigual. Há uma pressão crescente sobre a qualidade de vida dos povos tradicionais, indígenas, quilombolas, geraizeiros, sertanejos, vazanteiros, que habitam a região e vivem dos recursos do bioma. São pelo menos 12,5 milhões de pessoas que dependem do Cerrado. 


Essas comunidades, que não ocupam o centro do poder econômico e político, apresentam maior susceptibilidade à exposição aos riscos e aos impactos ambientais negativos oriundos dos processos de produção. Com isso, fica patente a visão de que, concretamente, o espaço geográfico reflete as relações de poder e os conflitos sociais travados na sociedade contemporânea.


A justiça ambiental é compreendida como o conjunto de princípios e práticas que asseguram que nenhum grupo social, seja ele étnico, racial ou de classe, suporte uma parcela desproporcional das consequências ambientais negativas de operações econômicas, decisões de políticas e programas federais, estaduais ou locais. No entanto, este conceito, em toda sua beleza teórica, está ausente nas mentes de nossos tomadores de decisão.


Ela que prometia o acesso justo e equitativo, direto e indireto, aos recursos ambientais do país. Ela que jurava o amplo acesso às informações relevantes sobre o uso dos recursos ambientais, a destinação de rejeitos e a localização de fontes de riscos ambientais, bem como processos democráticos e participativos na definição de políticas, planos, programas e projetos que lhes dizem respeito. A justiça que deveria garantir nosso protagonismo na construção de modelos alternativos de desenvolvimento a fim de assegurar a democratização do acesso aos recursos ambientais e a sustentabilidade do seu uso. Aqui ela não existe.


No entanto, nem só de injustiça se faz a crise climática. A busca infindável do lucro inescrupuloso provará de seu veneno. A produção de grãos no bioma do Cerrado pode sofrer uma redução de 21% em cenários de altas emissões ou de 5% caso haja cortes rápidos nas emissões, especificamente para o trigo. No caso do milho, as estimativas indicam uma queda de 10% ou 6%, respectivamente. Estudos apontam que, em cenários extremos, essa redução pode alcançar até 71% ou 38%. O estresse do calor pode reduzir o crescimento animal e a produção de leite e ovos, aumentar a mortalidade animal e fazer cair em 36% a produção nacional de peixes. 


O Brasil poderá perder cerca de 11 milhões de hectares de terras adequadas à agricultura até 2030. Apenas no bioma Cerrado, associa-se a isso enormes áreas degradadas e de baixa produtividade, estimadas em mais de 28 milhões de hectares, correspondendo a 47% de todas as pastagens. Os efeitos negativos sobre a oferta de produtos e commodities podem resultar em preços significativamente mais elevados de algumas matérias-primas e alimentos básicos, como arroz, feijão e proteína animal. Ou seja, devido à possível redução de produção causada pela mudança do clima, a tendência é reduzir a disponibilidade e aumentar os preços dos produtos agrícolas, com impacto em todas as cadeias produtivas dependentes desses insumos e na alimentação básica.


Na economia, o cenário não é menos sombrio. Com o PIB 13,5% menor do que seria sem o aquecimento antrópico, o nosso país está em grande risco de perda da capacidade de trabalho, especialmente na agricultura, em 24% com altas emissões ou 9% com a redução rápida. Para mais, o impacto na renda média no Brasil pode chegar a 84% menos em 2100.


Diante desses gargalos, é preciso desenvolver estratégias e ações concretas que abordem efetivamente os impactos das mudanças climáticas e da perda de biodiversidade, e buscar transformações sociais, mudanças paradigmáticas e mecanismos de financiamento que valorizem um Cerrado em pé.


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